https://oglobo.globo.com/ela/a-saga-das ... a-24376515
A saga das garotas de programa em tempos de pandemia
Profissionais do sexo deixaram as ruas, mas continuam atendendo 'clientes fiéis' e correndo risco de contaminação
Guilherme Scarpa
Enquanto muitos trabalhadores se perguntam quando os patrões adotarão a MP 936, que autoriza empresas a reduzirem em até 70% o salário de seus funcionários, uma classe historicamente marginalizada convive há mais de três semanas com reduções ainda maiores. Dani Karla, de 27 anos, garota de programa há 7 anos, faz parte deste grupo. No início do mês, quando a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, propôs que as prostitutas respeitassem o isolamento social prestando serviços virtuais, Dani riu. Para não chorar. “Ninguém sabe que eu faço esse tipo de serviço, como vou me divulgar por aí, fazer vídeo? Não posso ficar em casa esperando a morte chegar, sem me alimentar”, diz ela, que cobra R$ 170 por hora. Dani segue atendendo “um ou outro cliente” e acredita ter desenvolvido um método próprio para não pegar a Covid-19. “Digo logo: ‘Você pode ficar à distância de um braço do meu rosto, por favor?’ Alguns nem encostam direito em mim. Às vezes, pedem máscara. Acho ótimo. Beijo na boca nem morta”.
De acordo com especialistas, a “técnica” de Dani não é capaz de protegê-la. “Essa é uma doença viral de transmissão respiratória. Mesmo com a distância, pequenas gotículas resistem no ambiente por horas na forma de aerossol”, explica a infectologista Karis Rodrigues. “Além das gotículas, tem o uso das mãos. O risco é brutal”, avalia o médico sanitarista Sérgio Zanetta.
A vida das garotas de programa em tempos de coronavírus Foto: Shutterstock A vida das garotas de programa em tempos de coronavírus
Mais famosa ex-garota de programa do Brasil, Raquel Pacheco, a Bruna Surfistinha, defende o atendimento virtual. “Pelo menos por este período, é uma boa tornar-se ‘camgirl’ (garota da câmera, em tradução literal)”, diz. “É uma solução para que as meninas ganhem algum dinheiro durante o isolamento dos que podem ficar em casa. Na internet, é possível encontrar vários caminhos, dicas e plataformas para trabalhar desta forma.”
Se ainda estivesse no ramo, Raquel afirma que adotaria o distanciamento, contando com a compreensão dos clientes mais fiéis. “Por mais difícil que seja parar, priorizaria a minha saúde, para ficar bem e retornar com tudo após o isolamento.” Para a clientela cativa, ela sugeriria “pacotes especiais”, como “vale-compras”. “Criaria promoções, como algumas lojas têm feito. Aqueles que entenderem o momento que o mundo está vivendo, seriam beneficiados com um bom desconto — eu daria 20% — e poderiam usufruir dele depois da pandemia”, explica.
Por mais incômoda que seja a ideia da venda do corpo à prestação, o fato é que, na prática, existe uma negação da pandemia tanto por parte dos clientes quanto de algumas profissionais do sexo. “Não vou dizer que não tenho medo, mas é só marcar o motel que estarei lá”, diz Priscilla Jones, de 25 anos. Ela cobra R$ 300 por hora e aceita todos os cartões. “Percebi que todo o mundo está assustado, mas não tenho como parar agora. Sou de Goiás e trabalho no Rio. Voltar para a minha cidade está fora de questão”, comenta.
Desde que o Brasil adotou o distanciamento social como forma de controlar a pandemia, Priscilla tem contado com as boas gorjetas dos consumidores fiéis para pagar o aluguel. “Torço para não pegar a doença e continuo fazendo tudo igual”, confessa. “Os clientes que ainda nos procuram parecem estar vivendo em um universo paralelo. Para eles, a doença não existe.”
Por mais que ainda atendam a cerca de um terço da clientela de antes da pandemia, Dani, Priscila e outras garotas de programa desapareceram das ruas. Nas esquinas da Avenida Atlântica não há mais meninas trabalhando, e em “boates” como Barbarella e Marrakech, próximas à Prado Júnior, as portas estão fechadas com avisos sobre o período de isolamento.
Gerente de uma termas no Centro do Rio, Roberta Cardoso, de 44 anos, dispensou do trabalho as meninas que “estavam com medo da Covid-19”, mas se recusa a fechar a casa mesmo não estando na lista de “serviços essenciais” divulgada pelo governo. “Respeitei a decisão de cada uma das garotas. Quem quer trabalhar, trabalha. Estou funcionando com meia casa só. Não posso parar. Caso contrário, elas também não ganham.” E quem parou de trabalhar vai receber alguma ajuda? “Minha não. Como vou garantir isso?”, ela responde. É aí que mora o problema. Como muitos trabalhadores autônomos informais, as garotas de programa têm convivido com uma dúvida diária: caso se resguardem, não têm dinheiro sequer para comer; se continuam trabalhando, podem pegar e transmitir a doença.
Para ajudá-las, a sede da Casa Nem (ONG que atende a travestis, transsexuais e transgêneros), em Copacabana, foi transformada num abrigo de desinfecção e troca de roupa, numa parceria com a Coordenadoria Especial da Diversidade Sexual. “Lançamos uma campanha de arrecadação e começamos a receber doações de roupas e mantimentos. A ideia inicial era atender a 350 pessoas, mas já ultrapassamos essa meta”, diz Indianarae Siqueira, idealizadora e coordenadora da Casa, que fica na Rua Dias da Rocha.“Vamos vencer o corona. Vai ser como mais um temporal nesta cidade”, completa Indianarae, para quem a comparação com a epidemia do HIV nos anos 1980 acaba sendo inevitável. “Sabemos que a primeira população a ser deixada para trás, historicamente, é a de rua, das prostitutas e a LGBTI. No dia 16 de março, decidimos bloquear o prédio da Casa Nem para resguardar esse público.”
Coordenadora do Observatório da Prostituição da UFRJ, a antropóloga Soraya Simões tem feito campanhas informando às profissionais do sexo que elas têm direito ao auxílio emergencial de R$ 600 para completar a renda. “A pandemia acentua a desigualdade social: tem quem pode parar de trabalhar e quem não pode”, diz. “As meninas de classe média, jovens universitárias que atendem a partir da internet, estão mais protegidas. Mas as que vivem nas ruas correm tanto risco de contágio como os médicos ou entregadores de comida. Este é um retrato deste momento”, analisa.
Vivianne Mel, de 32 anos, é uma dessas garotas “mais protegidas” a que Soraya se refere. “Vivi não está trabalhando hoje”, diz, ao ser procurada. Depois de alguma insistência, ela revela o motivo. “Estou de quarentena desde o dia 17. Trabalho para um site e atendo num lugar fixo. Eles me liberaram, mas duvido que me paguem algum centavo. Não sei quanto tempo a quarentena vai durar. Tenho sorte de ter minhas economias”, diz ela, que cobrava R$ 400 por programa. “Já me inscrevi para ganhar o auxílio emergencial. Mas com R$ 600 não dá para viver. Eu ganhava mais que isso numa noite”, completa.
Ex-enfermeira com 4 anos de prática, Vivi diz que sugeriram que ela usasse álcool gel com os clientes para não deixar de atender. “Como, se temos contato direto com eles? É muito complicado”, pondera a garota, que decidiu trocar a carreira de enfermeira pelos programas porque “pagava muito melhor e não via outra escolha para sobreviver”. Mal sabia ela que sua antiga profissão estaria entre as mais requisitadas do mundo, assim como a de outros profissionais de saúde, que têm ajudado dezenas de milhares de pessoas a sobreviverem à Covid-19.
A saga das garotas de programa em tempos de pandemia
Profissionais do sexo deixaram as ruas, mas continuam atendendo 'clientes fiéis' e correndo risco de contaminação
Guilherme Scarpa
Enquanto muitos trabalhadores se perguntam quando os patrões adotarão a MP 936, que autoriza empresas a reduzirem em até 70% o salário de seus funcionários, uma classe historicamente marginalizada convive há mais de três semanas com reduções ainda maiores. Dani Karla, de 27 anos, garota de programa há 7 anos, faz parte deste grupo. No início do mês, quando a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, propôs que as prostitutas respeitassem o isolamento social prestando serviços virtuais, Dani riu. Para não chorar. “Ninguém sabe que eu faço esse tipo de serviço, como vou me divulgar por aí, fazer vídeo? Não posso ficar em casa esperando a morte chegar, sem me alimentar”, diz ela, que cobra R$ 170 por hora. Dani segue atendendo “um ou outro cliente” e acredita ter desenvolvido um método próprio para não pegar a Covid-19. “Digo logo: ‘Você pode ficar à distância de um braço do meu rosto, por favor?’ Alguns nem encostam direito em mim. Às vezes, pedem máscara. Acho ótimo. Beijo na boca nem morta”.
De acordo com especialistas, a “técnica” de Dani não é capaz de protegê-la. “Essa é uma doença viral de transmissão respiratória. Mesmo com a distância, pequenas gotículas resistem no ambiente por horas na forma de aerossol”, explica a infectologista Karis Rodrigues. “Além das gotículas, tem o uso das mãos. O risco é brutal”, avalia o médico sanitarista Sérgio Zanetta.
A vida das garotas de programa em tempos de coronavírus Foto: Shutterstock A vida das garotas de programa em tempos de coronavírus
Mais famosa ex-garota de programa do Brasil, Raquel Pacheco, a Bruna Surfistinha, defende o atendimento virtual. “Pelo menos por este período, é uma boa tornar-se ‘camgirl’ (garota da câmera, em tradução literal)”, diz. “É uma solução para que as meninas ganhem algum dinheiro durante o isolamento dos que podem ficar em casa. Na internet, é possível encontrar vários caminhos, dicas e plataformas para trabalhar desta forma.”
Se ainda estivesse no ramo, Raquel afirma que adotaria o distanciamento, contando com a compreensão dos clientes mais fiéis. “Por mais difícil que seja parar, priorizaria a minha saúde, para ficar bem e retornar com tudo após o isolamento.” Para a clientela cativa, ela sugeriria “pacotes especiais”, como “vale-compras”. “Criaria promoções, como algumas lojas têm feito. Aqueles que entenderem o momento que o mundo está vivendo, seriam beneficiados com um bom desconto — eu daria 20% — e poderiam usufruir dele depois da pandemia”, explica.
Por mais incômoda que seja a ideia da venda do corpo à prestação, o fato é que, na prática, existe uma negação da pandemia tanto por parte dos clientes quanto de algumas profissionais do sexo. “Não vou dizer que não tenho medo, mas é só marcar o motel que estarei lá”, diz Priscilla Jones, de 25 anos. Ela cobra R$ 300 por hora e aceita todos os cartões. “Percebi que todo o mundo está assustado, mas não tenho como parar agora. Sou de Goiás e trabalho no Rio. Voltar para a minha cidade está fora de questão”, comenta.
Desde que o Brasil adotou o distanciamento social como forma de controlar a pandemia, Priscilla tem contado com as boas gorjetas dos consumidores fiéis para pagar o aluguel. “Torço para não pegar a doença e continuo fazendo tudo igual”, confessa. “Os clientes que ainda nos procuram parecem estar vivendo em um universo paralelo. Para eles, a doença não existe.”
Por mais que ainda atendam a cerca de um terço da clientela de antes da pandemia, Dani, Priscila e outras garotas de programa desapareceram das ruas. Nas esquinas da Avenida Atlântica não há mais meninas trabalhando, e em “boates” como Barbarella e Marrakech, próximas à Prado Júnior, as portas estão fechadas com avisos sobre o período de isolamento.
Gerente de uma termas no Centro do Rio, Roberta Cardoso, de 44 anos, dispensou do trabalho as meninas que “estavam com medo da Covid-19”, mas se recusa a fechar a casa mesmo não estando na lista de “serviços essenciais” divulgada pelo governo. “Respeitei a decisão de cada uma das garotas. Quem quer trabalhar, trabalha. Estou funcionando com meia casa só. Não posso parar. Caso contrário, elas também não ganham.” E quem parou de trabalhar vai receber alguma ajuda? “Minha não. Como vou garantir isso?”, ela responde. É aí que mora o problema. Como muitos trabalhadores autônomos informais, as garotas de programa têm convivido com uma dúvida diária: caso se resguardem, não têm dinheiro sequer para comer; se continuam trabalhando, podem pegar e transmitir a doença.
Para ajudá-las, a sede da Casa Nem (ONG que atende a travestis, transsexuais e transgêneros), em Copacabana, foi transformada num abrigo de desinfecção e troca de roupa, numa parceria com a Coordenadoria Especial da Diversidade Sexual. “Lançamos uma campanha de arrecadação e começamos a receber doações de roupas e mantimentos. A ideia inicial era atender a 350 pessoas, mas já ultrapassamos essa meta”, diz Indianarae Siqueira, idealizadora e coordenadora da Casa, que fica na Rua Dias da Rocha.“Vamos vencer o corona. Vai ser como mais um temporal nesta cidade”, completa Indianarae, para quem a comparação com a epidemia do HIV nos anos 1980 acaba sendo inevitável. “Sabemos que a primeira população a ser deixada para trás, historicamente, é a de rua, das prostitutas e a LGBTI. No dia 16 de março, decidimos bloquear o prédio da Casa Nem para resguardar esse público.”
Coordenadora do Observatório da Prostituição da UFRJ, a antropóloga Soraya Simões tem feito campanhas informando às profissionais do sexo que elas têm direito ao auxílio emergencial de R$ 600 para completar a renda. “A pandemia acentua a desigualdade social: tem quem pode parar de trabalhar e quem não pode”, diz. “As meninas de classe média, jovens universitárias que atendem a partir da internet, estão mais protegidas. Mas as que vivem nas ruas correm tanto risco de contágio como os médicos ou entregadores de comida. Este é um retrato deste momento”, analisa.
Vivianne Mel, de 32 anos, é uma dessas garotas “mais protegidas” a que Soraya se refere. “Vivi não está trabalhando hoje”, diz, ao ser procurada. Depois de alguma insistência, ela revela o motivo. “Estou de quarentena desde o dia 17. Trabalho para um site e atendo num lugar fixo. Eles me liberaram, mas duvido que me paguem algum centavo. Não sei quanto tempo a quarentena vai durar. Tenho sorte de ter minhas economias”, diz ela, que cobrava R$ 400 por programa. “Já me inscrevi para ganhar o auxílio emergencial. Mas com R$ 600 não dá para viver. Eu ganhava mais que isso numa noite”, completa.
Ex-enfermeira com 4 anos de prática, Vivi diz que sugeriram que ela usasse álcool gel com os clientes para não deixar de atender. “Como, se temos contato direto com eles? É muito complicado”, pondera a garota, que decidiu trocar a carreira de enfermeira pelos programas porque “pagava muito melhor e não via outra escolha para sobreviver”. Mal sabia ela que sua antiga profissão estaria entre as mais requisitadas do mundo, assim como a de outros profissionais de saúde, que têm ajudado dezenas de milhares de pessoas a sobreviverem à Covid-19.