SAPATOS
IMAGEM FETICHE NA ARTE
CONTEMPORÂNEA
Renato da Silva Ruiz
Esta proposta de trabalho está ligada à minha experiência profissional como design de calçados, na qual sou especialista, trabalhei dez anos na indústria calçadista, criando sapatos para o público, quase que exclusivamente feminino, tendo a oportunidade de fazer sapatos bastante elaborados onde na maior parte das vezes o fetiche foi ordem do dia para as coleções. No design de calçados prioriza-se muito mais o ornamento do que a ergonometria, haja vista os problemas ligados à postura, a coluna, alux valgus (nota 1), e vários problemas ortopédicos.
Desde esta época, as questões relacionadas aos sapatos-ornamentos instigaram minha curiosidade e me levaram a buscar suas razões. Poderia traçar uma história das fantasias culturais através do designer dos sapatos, mas o objeto deste estudo, neste momento, é mostrar algumas das fantasias que mais despertaram minha atenção.
Lendo o romance Com os Pés Atados, da romancista Kathryn Harrison, fui surpreendido com o relato que Kathryn, na voz das lembranças de May, faz sobre o processo de atar os pés das jovens da classe alta chinesa. Ainda que ciente das deformações do pé da mulher chinesa, anterior à Revolução de Mao Tse Tung, o referido relato realmente me chocou. Aproprio-me deste relato para contextualizar o meu objeto, sapato-fetiche, num primeiro instante.
A seguir, indo da China à Grécia encontro Homero, que em sua Odisséia também descreve mais um significativo texto passando pela história a respeito deste invólucro do pé, o sapato. Na Grécia também meu objeto de pesquisa era envolto de surpresas fetichistas. Mas não só na Antigüidade histórica, no nosso cotidiano ocidental Ferragamo, Dior, Roger Vivier e muitos outros se ocuparam do design de sapatos contemporâneos buscando muita inspiração nas culturas antigas acima citadas. Estes designers salientaram que tanto na ergonometria de forma pontuda do sapato chinês quanto nos ornamentos de cetins e bordados daquela cultura suas inspirações. Mas não esqueceram das pedrarias incrustadas nas sandálias gregas e romanas e toda a sedução atribuída para estes adereços.
Logo a seguir, apresento, à guisa de informação histórica contemporânea, o sapato Stiletto, concepção antecipada de Dior para os sapatos que completaram moda do New Look proposta por ele mesmo e que se tornaram os grandes protagonistas dos pés das mulheres ocidentais a partir dos anos 50.
No último capítulo, apresento algumas apropriações deste objeto, sapato-fetiche, na arte contemporânea. Descrevo o trabalho de Andy Warhol (1928-1987), artista americano símbolo da Arte Pop e da artista espanhola Victória Civera (1955), residente em Nova York, que transformam o sapato de peça do vestiário cotidiano em obra de arte. Mas antes deles, encontramos em muitas outras pinturas, e até nos frisos egípcios, sapatos figurante de histórias sedutoras. Percebo que estes, nos trabalhos de Warhol e Civita são, mais que um figurante, protagonistas da obra de arte. Ele mesmo obra-produto, obra-fetiche.
Quanto à palavra fetiche, busco as definições do sexólogo do século XIX Von Krafft-Ebing, do psicanalista Freud, por suas teorias sobre o fetiche em O Mal Estar da Civilização e do semioticista Sebeok, para entendimento da minha hipótese, de que o sapato muito mais que para abrigar os pés, esteve a serviço da sexualidade, sempre foi uma coroa dos pés.
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1 LÓTUS DOURADO: No romance Com os Pés Atados, de Kathryn HARRISON (2001, p.30), lemos:
"Então Yu-ying levou May para seu quarto, onde a sentaram numa cadeira vermelha decorada com caracteres de obediência, prosperidade e longevidade. Pegou os sapatos de May e atirou-os no fogo, e quando eles arderam até as cinzas ela trouxe uma tigela de água morna perfumada com jasmim e colocou-a sob os pés de May (...). A água deixou May sonolenta e ela fechou os olhos. Quando os abriu, sua avó estava em pé diante dela com um par de chinelos de seda com borboletas bordados na altura dos artelhos (...)".
O relato de uma tradição herdeira da China Imperial de enfaixar os pés das meninas ricas a partir dos dois a três anos de idade, para que ficassem pequenos, é uma parte do cenário da vida da mulher chinesa anterior a revolução comunista. Uma fetichização social de apelo altamente sexual. O tesão era um diminuto pé coberto com o mais belo sapato, uma verdadeira langerie-sapato, escondendo, pelo menos para os nossos olhos ocidentais, uma monstruosa atrocidade, disfarçado de belo através de inúmeros sapatos usados durante o resto da vida da chinesa, até para dormir. Muitos sapatos, também, como veremos em algumas imagens, eram para que a mulher ficasse sempre sentada ou deitada, pois as decorações descem para as solas cuidadosamente elaboradas, em pelicas macias e das mais finas, ou até mesmo, em solas de papel de arroz finamente desenhadas, dois passos eram o suficiente para rasgá-las.
"Numa arca especial no quarto de vestir, na qual havia pares e pares de sapatos de seda vermelha: os preferidos de todo os anos de casamento da avó, cuidadosamente guardados. Sapatos decorados com pássaros e flores, com símbolos da vida, saúde e fecundidade. Sapatos bordados com fio de ouro e pérolas. Sapatos que Yu-ying usara quando o pai de May e seus irmãos haviam sido concebidos. Sapatos em que Yu-ying chutara e se encolhera e se aninhara no úmido muro da luxúria do marido. Sapatos que haviam sido esmagados, mordidos e chupados, com forros molhados de lágrimas, vinho e sêmem (...)".
Usando-os como uma sucessão de peles informativas, são simbologias para cada instante da vida das chinesas. Os sapatos transformam- se em heróis e bandidos no decorrer de suas vidas. Prometem transformações para a vida das meninas e tornam-nas mulheres. Como de uma forma mágica, as chinesas teciam sua própria sorte. Os sapatos chineses são cuidadosamente elaborados e verdadeiros rituais lhes são prestados. Cada um dos sapatos Lótus tinha um significado, codificado nas cores e figuras bordadas que o decoravam.
"O sofrimento não era o destino das mulheres? Afinal da contas, ele próprio usufruía o casamento com uma mulher esperta e delicada - uma mulher cujo pé, inteiro, ele podia receber no reto, mesmo quando a mão esquerda dela segurava seus testículos, a direita apertava o eixo do seu pênis e a boca molhava-lhe a glande".
As palavras de Stelle (1997, p.101) são significativas: "A atrofia dos pés por amarração era um procedimento delimitador e doloroso que limitava severamente a mobilidade física de uma mulher". O sapato chinês no ato sexual é preenchido de mitologias que estimula as fantasias do esposo mantendo o interessa pela esposa. Estes sapatos chineses, principalmente, são altamente fálicos e como falos são feminino e masculino. Assim é tanto deposito de sêmen, é boca por suas aberturas, é vagina por seu interior macio de pelica, como também é intercurso anal e vaginal para o homem e para a mulher pelo seu exterior, seu bico ou salto. Uma cúmplice dualidade.
"A cada três dias, os pés de May eram lavados e enfaixados novamente. Cada mês ela usava um sapato menor. Enquanto May progredia através de medidas de enfeitiçamento, os ossos em seus artelhos eram lentamente, inexoravelmente, quebrados. A pele dos seus pés apodreceu e se regenerou. Os músculos de suas panturrilhas, anteriormente fortes, encolheram-se; a carne de suas coxas afrouxou e se espalhou. (...) Foi necessário uma dúzia de pares de sapatos sucessivamente menores para May conseguir caber nos chinelos de cetim com borboletas (...)" (p.34).
A mutação do corpo, o flagelo transformado em objeto de desejo, fez do sapato um fetiche para cobrir e esconder e, mais que isso, divinizar o pé, tão desejado por vários povos e principalmente pelos chineses. Entretanto para Linda O'Keeffe. "Apesar de sua aparência disforme, os pés de Lotús eram considerados a parte mais erótica do corpo de uma mulher e os delicados sapatos ou botinas que os cobriam não eram menos deleitáveis aos olhos" (p.406).
Fonte: FAUX, Dorothy Schefer et al. Beleza do século, 2000, p.225.
2 LÓTUS DOURADO - O SAPATO FETICHE ORIENTAL: BREVE HISTÓRIA
Stelle e outros historiadores da moda e dos sapatos da cultura chinesa nos relatam que os belos e terrivelmente deformadores sapatos chineses vêm do século X, pelas bailarinas da corte imperial, que usavam meias apertadas, pés atados mutilações precoces que impediam o desenvolvimento normal do crescimento a fim de que as mulheres conservassem pés pequenos. O costume virou moda pela classe alta como marca de status, na Dinastia Sung, até virar um rito de passagem com dolorosos métodos de enfaixamento. Esperava-se que as chinesas ficassem com raros Lotus Dourada, um suposto pé que medisse 7,5 cm. Por volta do século XIV, os pés enfaixados tinham entrado até nas zonas campesinas (p.101). Quando o sistema comunista que foi implantado com e Mao Tse Tung em 1949 a China viu o fim dos pés, cânone da beleza imperial e símbolo de sua alienação. A Revolução Cultural de 67 baniu tudo o que era burguês. A cor foi amaldiçoada e a maquiagem e o penteado virou tabu. Enquanto no Ocidente se delirava em pleno psicodelismo, os chineses estavam proibidos dos prazeres da sedução. A partir da metade da década de 80, a ditadura cede à abertura: a moda e os salões de cabeleireiros aparecem timidamente (...). "A queda do muro de Berlim acelera a corrida chinesa para a ocidentalizaçã o (beleza do século 256)".
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3 DAS SANDÁLIAS GREGAS AO STILETTO - O SAPATO FETICHE OCIDENTAL
"Mal raiou a filha da manha, Aurora de róseos dedos, o dileto filho de Odisseu saltou da cama, vestiu a roupa, pendurou ao ombro o gládio acerado, atou nos delicados pés bonitas sandálias e passou para fora da alcova; seu semblante era de um deus" (p.19, Odisséia).
Já nos primeiros cantos da Odisséia de Homero, nossa tradição literária Ocidental de construção de nossa mitologia, a admiração pelos sapatos é presente. E no caso da Odisséia, as sandálias são as protagonistas dessa história, com um toque bastante fetichista E a arte, testemunha ocular, registra em seus estatuários e relevos, todo o esplendor das sandálias coadjuvantes das dionisíacas festas às batalhas mais sangrentas.
"Afrodite, a deusa grega do amor, era freqüentemente representada nua, apenas com um par de sandálias nos pés" (O'Keeffe, 1996, p.43).
Os gregos tiveram variedades em suas relações com seus calçados, usando-os em várias finalidades - sacras, heróicas e profanas. A admiração pela beleza e tamanhos dos pés envoltos de delicadas e belas sandálias, valorizava o ócio e a idealização da beleza. Bastante similar com a admiração do pé de Lótus Chinês.
São as sandálias que foram os principais calçados do início das civilizações históricas. Por todos os continentes elas foram usadas e feitas nos mais diversos materiais e amplamente exploradas nas mais diversas situações. São os sapatos mais antigos depois das peles enroladas e amarradas com tentos de couro, achados até agora registrados pela história. Cada civilização desenvolve seu estilo, mas basicamente todas com uma sola rija presa por correias.
Linda O'Keeffe (p.230) nos relata que a 3.500 a.C., os egípcios deixavam suas pegadas nas areias molhadas do Nilo, para moldarem seus pés com tiras de papiro entrelaçado formando uma sola, presas com tiras de couro cru, deixando o pé quase nu. Serviram para proteger contra as areias do deserto escaldante do Egito, mas principalmente foram usadas para prender pedras preciosas sobre os pés nus das imperatrizes egípcias.
Segundo nos relata Laver, dentro de casa os gregos não usavam sapatos e os mais pobres descalços e andavam nus. Os mais ricos usavam sandálias e as das cortesãs eram muitas vezes folheadas a ouro. As cortesãs gregas também usavam embaixo de suas sandálias, incrustadas na sola, tachas pressas que escreviam imprimindo a palavra "siga-me" no chão das ruas por onde passavam.
Roma impõe seu modo de vestir, os adornos dos calçados são mais simples a princípio: as sandálias eram feitas de uma só peça de couro, tingido a mão, envolvendo o pé e presa por tiras de couro. Eram conhecidas por Carbatinas, usadas por cidadãos romanos e nunca por escravos. Dentro das casas romanas, as mulheres usavam chinelos chamados soccus, que podiam ser de várias cores, com figuras pintadas e guarnecidas de jóias, como os calceus patricius do Imperador Nero (Laver, p.44).
A partir da Idade Média, os pés se escondem por pudor judaico cristão e os sapatos também, só que agora fechados envolvendo os pés uma segunda pele, como tatuagens. Principalmente no século XVIII, com os sapatos pequenos e apertados das cortesãs francesas, muito similares aos chineses no que diz respeito às elaboradas decorações e constrições. Há indícios, através da literatura erótica ocidental, principalmente nos contos de Marquês de Sade, que se bebia em verdadeiras orgias, muita champanhe nesses belos e delicados sapatos franceses, como também fizeram os chineses em suas beberranças. A partir do século XVI que a França passa a comandar as novidades respectivas as roupas, no século XVII é da França que saem as botinhas de abotoaduras tão apreciadas pelas mulheres da época e pelos fetichistas de plantão. Os saltos surgem com Luís XV e está ligado ao poder de superioridade no início, mas logo percebido como uma inspiração fetichista, também.
O século XVIII, foi rico nas fantasias com sapatos delicados. Gustave Flaubert usou referências de sapatos como no seu romance Madame Bovari, onde a mule de cetim cor-de-rosa de Ema seu personagem protagonista foi uma metáfora para falar de sedução (O'Keeffe, p.151).
"O meu olhar se prenderá aos teus sapatos. Amo-os como te amo a ti (...). Aspiro o seu perfume, o seu aroma de verbera" (Gustave Flaubert).
As mules rococós usadas por coquetes francesas, onde os dedos terão sido cruelmente apertados por uma biqueira pontiaguda, dando uma impressão de pés pequenos.
4 STILETTO, UM SAPATO ETERNO
A invenção de uma estrutura de aço que fica dentro de qualquer sapato de salto propiciou fazer sapatos e saltos muito delicados e altos. Antes a base superior ou bandeja dos saltos se estendiam até quase o meio da abóbada do pé, deixando-o cair direto. Eram muito incômodos, os saltos tinham de ser mais grossos, mais largos, além dos sapatos serem muito apertados. Surgem os sapatos de salto altos modernos. Uma mudança de postura passa a acontecer novamente, com quem os calçava, e para a sedução o sapato de salto alto era uma arma poderosíssima. Assim, como o sapato chinês parecia como uma langerie, os sapatos de salto ocidentais estão mais para uma arma branca. "No século XVII, os sapateiros europeus modificaram as plataformas para criar os sapatos de salto alto. Usado por homens e mulheres no começo, e mais tarde usado somente pelas mulheres" (Steelle, 1997, p.105).
Segundo Linda O'Keeffe (1996), a história dos saltos é pouco conhecida, mas parece que açougueiros egípcios usavam-nos para manter-se longe das carnes. Os mongóis tinham saltos nas botas para prenderem-se nos estribos e a partir de Catarina de Médicas, em 1533, a corte francesa passa a usar os sapatos de salto vindos de Florença, herdeiros das plataformas (Chapins) medievais. Com Luís XV, os saltos adquiriram status soberano, era coberto de vermelho, mais um maneirismo da nobreza francesa. Mais tarde, um pouco, as francesas chegavam a se equilibrar em saltos de 13cm que precisavam de bengalas para não cair, também bastante similar ao andar cambaleante das chinesas, quando andavam com seu Lótus. Com a queda da bastilha, o fim da monarquia, o salto desaparece por um bom tempo, como um símbolo de nobreza, no século seguinte, dando espaço para as sapatilhas mais rasteiras, mas não menos luxuosas e carregadas de simbologias elitistas. O fim do século XIX os saltos estavam singelamente nas botinhas ricamente bordadas das senhoras, ou no submundo do fetichismo. Somente nos anos 20, do século XX que os saltos altos e a nudez dos pés com as sandálias voltam.
As guerras do século XX mantiveram um certo controle sobre a moda. Durante a Segunda Guerra, os sapatos se fecharam novamente e tornaram-se pesados e brutos. Em 1947, em plena recessão pós-guerra, Dior lança sua coleção New Look, onde o sapato de salto alto fino e bico fino, de decote simples antecipavam o que mais tarde chamou-se Stiletto, lançado simultaneamente por designer famosos como Ferragamo, ViVier entre outros em 1952. Este estilo de sapato compunha o traje, seguindo as linhas propostas por Dior, para o New Look reúne uma série de imagens do passado para uma nova proposta de postura agressiva da mulher, sem perda de sua feminilidade.
Em 1952, provavelmente por Ferragamo, o sapato Stilleto, como foi nomeado, o sapato de salto alto dos anos 50, definitivamente entra no mundo da moda. O salto alto de 10cm lembra um designer gótico, excessivamente pontudo, agrega o sentido de superioridade por sua inclinação, pela altura, pois os saltos mudam a postura de quem os usa, verticalizando- o.
"Toda a idéia de uma mulher usando saltos altos é enfatizar sua personalidade naturalmente dominante e agressiva" (Steelle, 1997, p.108).
Foi provavelmente esta intenção que Dior tinha quando criou o seu New Look, uma nova mulher para um novo mundo. As mulheres passaram a apertar seus pés em estreitos sapatos finos de couro liso, torções e joanetes terríveis marcaram toda uma geração. Estes sapatos a moda chinesa ganharam um status, como de uma amarração fetichista. Foi legado aos sapatos Stilleto o mais alto grau de fetichização, indispensável na hora de alongar uma perna, ressaltar a panturrilha para a hora da sedução. Permanente no mercado desde sua criação pouco foi modificado em sua estrutura básica.
De imagem forte, de linhas fáceis, de ângulos fortes, obtusos se expande como uma estrela. O bico para frente faz um ângulo com o retropé que se projeta para cima onde fica o salto que contrariamente se direciona para baixo. São três linhas muitas bem distribuídas, que são capazes de reposicionar quem o usa em uma nova postura, pois muda radicalmente nosso centro de gravidade, alterando nossa postura, obrigando nosso corpo a se reposicionar, distribuindo- se em "S" e sensual, sexual, sedutor, sublimes, curvas acentuadas, para nos equilibrarmos de novo em uma nova postura perante o mundo. Mais fálica agressiva, horizontalizada a mulher tem um novo mundo a desvendar. Um mundo ainda de homens. Da competitividade, o mundo do poder da imagem, a emancipação feminina é ajudada pela nova imagem da mulher e os saltos colaboraram muito para isso. Foram eficientes em deixar a marca de competência (nota 2) e feminilidade.
5 O FETICHE
No século XIX Richard von Krafft-Ebing, apud Steelle (1997, p.19) definiu fetichismo como "A associação de desejo ardente com a idéia de certas partes da pessoa feminina, ou certos artigos do vestuário feminino". Mais recentemente, o semioticista Sebeok, em seu artigo para a Revista Face de Semiótica, faz uma viagem pelas denominações do fetiche através de uma breve revisão etimológica: (...) Fetiche do substantivo português, feitiço como charm, hechizo em castelhano, do latim 'facticius', ou em inglês 'factitious' como artificial (...). Denominado para qualquer objeto usado pelos indígenas da costa guineense, o termo é disseminado e usado pelos marinheiros portugueses do século XV. Já a citação mais antiga de fetiche inglesa é na obra de Purchas, O Pilgrimage em 1613 (SEBEOK, 1988).
A partir de 1760, a antropologia começa a usar o termo num sentido mais amplo do objeto inanimado dotado de magia ou reverenciada ao extremo. Passa pelo totemismo com McLennan (1869), Levi-Strauss (1962), e Van Wing (1938). O interesse era por causa do emprego no contexto de oposição metáfora/metoní mia, mas Augusto Conte e Charles de Brosse interpretam como sendo, especificamente, uma base para suas teorias a respeito da religião - sacramental, profético e mítico. "Nas formas primitivas da religião sacramental, quando próprio objeto, talvez dotado de existência animada em si e de si, é reverenciado como sendo divino, e tem sido designado de fetiche". Há noções em contextos psicológicos conseqüentemente sexuais. Conforme o Sebeok, é com o Livro Psychopathia Sexualis, de Von Krafft-Ebing que se fez pela primeira vez, menção ao fetiche como uma "perversão", como algo que seja vergonhoso e exija sanções sociais para o seu controle. Uma análise em semiótica mostra que o fetiche também é um poderoso signo (SEBEOK, 1988).
Para Freud, o fetiche é um substituto para o pênis da mulher (mãe). Segundo ele, o fetiche, é a última imagem antes do trauma, sendo este a descoberta da mãe castrada e uma possível castração de si mesmo.
Segundo Steele (1997, p.23), de acordo com Freud, a única maneira pela qual o fetichista adulto pode superar sua "aversão aos verdadeiros genitais femininos" é "dotando mulheres de características que fazem delas objetos sexuais toleráveis". O objeto de fetiche realmente funciona como "uma prova de triunfo sobre a ameaça da castração e uma proteção contra ela".
"A amarração para atrofia dos pés tem sido interpretada como uma terrível forma de opressão feminina e/ou como um tipo de sexo bizarro" (Steelle, 1997, p.100). No romance de Kathryn Harrison, o qual descreve a atrofia por amarração, podemos deduzir como Steele, também, que a simbologia sexual desses atos são bastante perceptivas e a literatura erótica fornecem os detalhes como o uso do dedão (Steele, 1997, p.101), ou a ponta do sapato no jogo sexual do casal como um substituto fálico, ou a fenda do pé ou o decote do sapato usado como uma pseudovagina. Os sapatos chineses eram incorporados em vários rituais, como jogos onde os homens se embebedavam se servindo no próprio sapato.
No Ocidente como no Oriente, os pés pequenos são para a beleza feminina e os pés grandes à virilidade masculina. Por isso, "que saltos altos, em particular, tem sido explicitamente comparados aos pés atrofiados por amarração" Chines (Steele, 1997, p.97).
Os sapatos fetichistas ocidentais têm a mesma tradição de amarração e constrição, tão características dos fetichistas e do Lótus chinês.
Os apertados e finos sapatos franceses dizem que, para serem calçados era preciso colocar os pés no gelo. Os "Stilettos" dos anos 50, que ficaram estigmatizados como um sapato fetichista do Ocidente. Com seu bico comprido obtuso e fino, seus ângulos agressivamente radicais, o salto faz contraponto com a frente, jogando uma vertical eleva o corpo de quem o usa (para o fetichista não existe sexo para usar os sapatos, e sim uma certa condição, ser passivo, escravo ou ativo, dominador). A verdade é que os sapatos-fetichistas transitam por essas duas condições (ativo/passivo) de uma maneira absolutamente tranqüila. Podendo ser usados até pelos dois parceiros no mesmo evento.
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6 IMAGENS DOS SAPATOS NA ARTE CONTEMPORÂNEA
A arte contemporânea aproximou-se da cultura da roupa apoderando-se de suas potencialidades formais e metafóricas e o aparecimento das imagens de sapatos, nas inserções da visualidade na cultura através da arte não é nova, e se apresenta há muito tempo. Estes registros foram e são importantes pois colaboram para a compreensão das narrativas que constroem a história e deflagraram para o futuro os hábitos e costumes dessas culturas.
Este objeto (o sapato) foi transformando- se em objeto de especulação da própria arte, de figurante à protagonista. Os sapatos aparecem registrados na arte egípcia, nos auto-relevos, cerca de 1350 a.C., em forma de sandálias de dedo, como elementos de sedução e riqueza, nos pés do Faraó Tutankhamon e de sua esposa. Nesta época eram realmente as sandálias que dominavam os pés egípcios.
Avançando pela Antigüidade entramos no Renascimento onde Tamancas de madeira, muito usadas no final da Idade Média, rompe de forma obtusa o enquadramento no quarto do casal Arnolfino de Van Eyck, na pintura a óleo no ano de 1434. Nestas épocas, os sapatos adquiriram um grande destaque na produção de objetos de demonstração de ascensão social, e por isso, chegaram e extremos góticos, como na arquitetura da época. Na verdade os bicos finos são herdeiros de uma tradição mongol de andarem a cavalo e copiada para as armaduras européias.
Avançamos mais ainda na história da arte e chegamos aos vaporosos e românticos quadros de Fragonard, O "balanço" é um exemplo, na cena de sedução, o sapato da cortesã era lançado como um convite para o cavalheiro.
Também a nudez, a sutileza e a delicadeza das chinelas vermelhas forradas de branco nos pés da Banhista de Ingres, ano 1808, nos chamam a atenção. Da era napoleônica, de ideais neoclássicos.
Também, René Magritte, já contemporâneo apresenta uma grande colaboração para a visão dos sapatos na arte, quando explora em óbvias metáforas "roupa-corpo" . Poe os pés na mesa pelos seus "sapatos-pés" , explicitando a sexualidade pulsante das indumentárias apresentadas.
Assim, chegamos à contemporaneidade, com os mercadológicos objetos-fetiche, nas obras de Andy Warhol. Andy Warhol que homenageia, através dos desenhos e colagens de sapatos as figuras da mídia, em suas obras de arte. O artista ao receber uma encomenda para uma publicidade sobre calçados, da Revista de Moda Glamour, entusiasmou- se com a proposta e elaborou cinco dezenas de desenhos, transformou- os em a Série dos Golden Shoes, destinados às suas estrelas cinematográficas preferidas, Elvis Presley, Judy Garlandy, Mae West, Zsa Zsa Gabor, Julie Andrews, James Dean, entre outros. Priorizando a folha de ouro como ornamento em seus sapatos, Andy coroava os pés a quem cada sapato era destinado, super valorizava o sapato como peça de valor aquisicional capitalista e, também, valorizava seu próprio trabalho, sapato obra de arte. Seus desenhos de sapatos levantaram uma discussão sobre a cultura de massa, que sempre no intuito da venda, enfoca os objetos fetiches.
A este respeito, Andy Warhol não esta só. A artista espanhola Victória Civera, apresenta uma exposição de Esculturas-Instalaçã o, denominado Las Hermanas Españolas. Nesta obra, enormes sapatos altamente fálicos - num discurso muito particular sobre suas próprias subjetividades, da condição feminina - explicitam a sexualidade, criam um novo corpo, um corpo extenso entre a mulher e o fetiche sapato. Estas esculturas têm uma ligação forte com as teorias freudianas sobre a sexualidade e esta está implícita na aura da obra de arte.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É do cotidiano, das mentalidades, de um olhar avesso, de baixo, que os homens potencializaram na história, a partir dos sapatos, as mais diferentes situações.
Elevação do corpo, como as plataformas venezianas medievais (Chapins), que propiciaram uma elevação da estatura das mulheres de 20, 40cm, às vezes até 60cm. Distintivo social, símbolo de riqueza, forte objeto de desejo, torturador. Objetos da indumentária presentes desde muito cedo.
Segundo Linda O'Keeffe (p.294), "Cavernas descobertas na Espanha que datam de 13.000 anos a.C., onde homens e mulheres aparecem com um tipo de botas feitas de peles de animais". E, sobretudo, fetiche. Os sapatos não são meros invólucros dos pés, nem tão pouco, serviu somente para proteger, mas sim foram eficientes como sinalizadores sociais, e mais eficientes ainda como objetos de sedução. A cada cultura lhes coube uma forma de representar esse sapato-fetiche. Vimos, basicamente, três deles, quais sejam, o Lótus dourado chinês e o Stiletto Ocidental, que apesar de serem tão antagônicos culturalmente, mantêm peculiaridades bem próximas, e as sandálias gregas. Os sapatos-fetiches são sapatos que na China virou objeto de museu e vergonha e que no Ocidente, ao contrário, virou cada vez mais objeto do desejo e está cada vez mais incorporado no cotidiano. Por estas razões, os sapatos podem estar presentes em qualquer ação do homem, e no caso do artista, como objeto de especulação para sua arte.
Vimos também que apesar de diferentes as propostas dos artistas Andy Warhol e Victória Civera, trabalharam o fetiche em suas obras, explorando a imagem dos sapatos com sucesso.
Os sapatos são invólucros que se apoderam das especificidades dos pés do homem e re-simbolizam- os, com maestria, adaptando-os de grupo para grupo em significativas ações comportamentais. Mas fundamentalmente, glorificam e coroam os pés. Mesmo que através de torturas e privações.
Assim, como as pinturas corporais ou as escarificações, os sapatos parecem ter sido muito mais utilizados como símbolos de passagens, fetiches e poder. Podemos, também, notar que as subjetividades com que as culturas trataram muitas vezes seus objetos cotidianos, como os sapatos ultrapassaram qualquer uso "prático e objetivo". Contudo, perdidos na caminhada do homem, e não somos capazes de saber quais foram os primeiros sapatos, mas podemos saber em algumas passagens - desenhos, fragmentos culturais, textos históricos, impressões semióticas -, que os sapatos construíram uma intrincada rede de significações, rituais e valores. Os sapatos adquiriram um cabedal de singularidades no tempo e no espaço e podemos vê-los agora na contemporaneidade como protagonistas também na Arte Contemporânea.
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NOTAS
nota 1) Alux Valgus joanetes, apesar de serem bastante comuns para quem tem propensão a eles, apareceram com grande incidência com os sapatos dos anos 50, os Stilettos e seus derivados com seus bicos muito finos, causaram enormes deformidades nos pés das mulheres.
nota 2) Refiro-me a competência, pois os sapatos de salto ou scarpins são muito usados e até exigidos nas empresas pelas mulheres executivas, em geral, pelas mulheres que trabalham fora. Virou um padrão como as gravatas para os executivos homens.
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