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Transferência de renda e autonomia
O governo federal brasileiro anunciou, no início de setembro, uma série de alterações no programa Bolsa Família, que transfere renda para a população pobre e miserável. Dentre as novas regras, há a ampliação do número de beneficiários por família, que passam de três para cinco filhos com até 15 anos. O programa atende atualmente cerca de 13 milhões de famílias, com valores que variam de R$ 32 a R$ 306, que precisam cumprir exigências relativas à educação e à vacinação das crianças e dos adolescentes.
A medida desencadeou uma onda de críticas que associam a transferência de renda a um suposto estímulo à natalidade. A crítica não é nova, remonta ao ano de 2004, quando o governo federal institui o Bolsa Família, com o objetivo de combater a pobreza e a miséria, concedendo a titularidade do benefício à mulher. Em entrevista ao CLAM, a cientista política e professora da Unicamp Walquíria Domingues Leão Rêgo discute como política públicas de cidadania, como o Bolsa Família, repercutem nos beneficiários e nas relações de gênero que atravessam a pobreza.
Como a sra. avalia a dinâmica de transferência estatal de renda do Programa Bolsa Família?
A obtenção de renda é o primeiro patamar indispensável para, de um lado, garantir condições mínimas à construção da cidadania. E como nos mostra a história da cidadania, esta depende dos processos políticos mais gerais e, ainda, de um conjunto de políticas publicas específicas. Tais como: políticas culturais, educacionais, habitacionais, transportes e, em especial, a garantia às pessoas que suas regiões de moradia possuam os benefícios do progresso técnico, tanto do ponto de vista quantitativo, como em qualidade, para lhes garantir a vida digna.
Sem dignificação da vida não existe cidadãos. Em um país injusto como o nosso e desequilibrado em termos de benefícios regionais, para milhões de brasileiros a vida já começa em condições de extrema desigualdade de oportunidades, em todos os sentidos. Vejo o Bolsa Família como o início importante de um processo potencialmente formador de cidadãos.
A titularidade do benefício da Bolsa Família é da mulher. A presidente Dilma Rousseff reiterou, há alguns meses, que o programa Bolsa Família é feito justamente para elas. De que forma essa centralidade na mulher repercute nas relações de gênero que existem no interior das famílias?
Na situação de miséria extrema, a garantia da vida pelo recebimento de renda monetária regular, entre brasileiros em estado de extrema pobreza, é uma experiência muito nova entre nós. Nas minhas pesquisas, percebi mulheres pobres muito conscientes de sua superioridade no gerenciamento da economia doméstica.
Seus maridos procuram trabalho e não o encontram, ou o encontram de modo irregular, recebendo uma remuneração humilhante. Eles queixaram-se muito mais desta situação do que de qualquer outra coisa e pareciam estar dando graças que alguém na família tem renda regular. Tanto quanto suas mulheres, eles são, de modo geral, analfabetos, sem nenhuma qualificação profissional que lhes capacite a disputar o mercado de trabalho nestas regiões completamente abandonadas pelo Estado há muito tempo. Os conflitos conjugais e familiares estão muito ligados ao alcoolismo masculino e à ausência de qualquer política pública específica para homens miseráveis.
No caso das relações de gênero, as mudanças que foram percebidas são mesmo moleculares. A experiência brasileira e sua forte cultura machista, patriarcal e dominadora constituem um tecido forte e historicamente muito denso para ser removido em tão pouco tempo. A cultura, em seu senso mais amplo, é um importante fator de legitimação da dominação masculina. Contudo, a pesquisa encontrou um caso ou outro onde se percebe que a mulher foi capaz de tomar algumas decisões de ordem moral, como pedir a separação no caso de casamento infeliz, ou devido ao alcoolismo e à violência dos maridos. Mas, na sua grande maioria, ainda impera o medo dos homens e da família.
Por todos estes motivos, ainda não se pode dizer muito sobre o impacto da Bolsa Família para estas questões de ordem moral e íntima das pessoas. O pouco que observei apenas dá para perceber que a renda monetária potencializa a conquista de maior autonomia decisória para as mulheres, inclusive sobre seu próprio corpo. Começam a decidir sobre o número de filhos que querem ter, recorrendo à cirurgia chamada de laqueadura. Contudo, esta questão é ainda muito delicada, pois existem interdições religiosas atuando muito fortemente sobre elas.
Em termos gerais, podemos afirmar que a dinâmica da transferência de renda centrada na mulher contribui para o seu empoderamento?
Percebe-se já alterações em direção à certa autonomização na vida das mulheres recebedoras da Bolsa Família. Sabemos de antemão que a cultura pode ser um fator fortíssimo de impedimento a sua liberação. A cidadania como processo histórico é uma construção política permanente, tanto quanto a democracia. Portanto o empowerment das mulheres e sua consequente autonomização também dependem de várias outras políticas públicas e, no caso, específicas, como afirmei anteriormente. Ou seja: políticas culturais, educacionais, assim como estruturas públicas de apoio, como escolas, creches, etc. Nenhuma política pública é poderosa e onipotente que possa dispensar complementos para que de fato se formem, com sua implementação, cidadãos demandantes de direitos. A história da cidadania demonstra que a cidadania democrática sempre contou na sua formação com conjuntos articulados de políticas públicas, bem como com o indispensável auxílio de processos políticos mais fundos e mais gerais.
As críticas mais freqüentes ao Bolsa Família sugerem que a transferência de renda seria uma forma de “acomodar” os beneficiários a ficarem em tal situação e não trabalharem, sendo o valor transferido uma espécie de “bolsa esmola”. Como a senhora avalia essas críticas?
Georg Simmel, o grande sociólogo alemão, em um ensaio de 1904 intitulado “Os Pobres”, já advertia que os ricos e privilegiados atribuem aos pobres todos os vícios e a si próprios todas as virtudes. Na verdade, os olham como se fossem uma massa homogênea e compacta de seres humanos, desprovidos de individualidades, personalidades, e histórias pessoais distintas. Em suma, os percebem como uma subumanidade. As pesquisas, não somente brasileiras e nem somente as minhas, comprovam exatamente o contrário destes estereótipos elitistas: as pessoas não se acomodam, querem mais da vida.
O ser humano é um ser “desejante”. A vivência de uma melhoria desperta nele vontade de obter outras, como qualquer pessoa do mundo. Querem trabalhar e, mesmo com obtenção da Bolsa Família, procuram desesperadamente trabalho. No caso das mulheres pobres que não encontram estruturas públicas, como creches e escolas de tempo integral, para deixar seus filhos na eventualidade de conseguir trabalho, que como dissemos anteriormente, inencontráveis nas regiões abandonadas pelo Estado, que podem fazer?
Programas de transferência de renda podem influenciar o planejamento reprodutivo, bem como a saúde sexual das mulheres?
O programa Bolsa Família é focado nas mulheres e impõe condicionalidades: freqüência atestada das crianças na escola e controle da sua saúde, que é atestado pelos boletins de vacinação, feitos nos postos de saúde, etc. Segundo muitos relatórios e documentos, feitos inclusive por órgãos e avaliações internacionais, houve queda significativa de morte por parto, e outras doenças femininas, assim como reduziu-se drasticamente a mortalidade infantil.
Como todas as mulheres, as mulheres pobres que recebem o Bolsa Família também temem a gravidez e gostariam de ter menos filhos. Uma das suas demandas mais comuns é poder fazer a laqueadura para não gerarem mais filhos. Sabemos que a taxa de fecundidade diminui onde entra informação sobre os funcionamentos do corpo e o esclarecimento geral sobre a reprodução da vida. Contudo, isto não se altera assim do dia para a noite. Pesam sobre elas fatores culturais, desinformação e tabus de origem religiosa. Mas, sempre que podem, manifestam o desejo de terem menos filhos e demandam a cirurgia que pode fazer cessar a gravidez indesejada. Ou seja, porque seria diferente para elas, somente porque são pobres, não têm vontades e desejos de uma vida melhor?
A senhora participou de uma pesquisa que buscou analisar os efeitos da autonomização das mulheres, no Brasil e na Índia, quando tomadas como foco principal de políticas de transferência de renda. Os efeitos são os mesmo ou o panorama social e as questões de gênero de cada país impõem conseqüências distintas?
Devo sempre advertir que a Índia é um mundo quase impenetrável a nós. Sua cultura, no sentido forte do termo, em relação à religião, às castas, às classes, é absolutamente própria e diversa da nossa. Por tudo isto, a comparação é muito difícil. De fato, estive na Índia para observar a política de micro crédito focada nas mulheres pobres. Deve-se lembrar que semelhante política ao caso indiano não constitui na sua grande maioria política de Estado, mas sim de bancos privados, com taxas de juros altas.
Isto mostra suas dificuldades e muitos fracassos na sua implementação. Sei que foi muito festejada nos anos 90 do século passado, mas pessoalmente voltei muito decepcionada com seus resultados. Estive com sociólogos e economistas indianos muito céticos sobre sua eficácia liberadora das mulheres. Aliás, muito ao contrário, eram muito críticos dos resultados das tais políticas.
Como sempre quando falamos de uma sociedade da complexidade da indiana devemos ser muito cautelosos com qualquer juízo que possamos fazer. Políticas de crédito para pobres devem ser precedidas de muita cautela e estudos cuidadosos para não transformá-las em mais um fator de sofrimento dos pobres. O caso indiano está pleno de sofrimentos e angústias das mulheres temendo não poder pagar aos bancos, trazendo como conseqüência, inclusive, o crescimento do número de suicídios. O fracasso de um empreendimento financiado pelo micro crédito recai completamente sobre os ombros das mulheres, que muitas vezes não resistem à pressão que a responsabilidade pela quebra da honra familiar lhes impinge.
No Brasil, o Bolsa Família é um programa estatal de transferência direta de renda para as mulheres. Não há nenhuma pressão insuportável sobre elas, como é o caso do crédito indiano. Não se pode falar em pressão sobre as mulheres beneficiadas pelo Bolsa Família semelhante à sofrida pelas mulheres indianas referida acima. Talvez nossas mulheres sofram angústia e pressão presentes na situação de pobreza extrema que sempre viveram e agora àquelas advinda das condicionalidades que o programa exige. Como por exemplo, as relativas ao desempenho escolar dos filhos na escola e as relativas à saúde das crianças. De longe, não pode ser comparado ao sofrimento da mulher indiana pobre, alvo das políticas de micro crédito implementadas por banqueiros privados.
O Brasil tem assistido a um movimento de migração das classes D e E para a classe C, isto é, um incremento da classe média. Qual a sua avaliação sobre o futuro desse modelo de transferência de renda pelo Estado em um quadro de redução, mesmo que sensível, das desigualdades e da pobreza?
Em primeiro lugar, estamos no início de uma grande experiência social e ainda não construímos espaços avaliativos adequados dela. Precisamos fazê-lo com cautela analítica. Em segundo, precisamos abrir um grande debate público para corrigir rumos e alterar desenhos institucionais com o objetivo de implementar em nosso país, pela primeira vez, um programa de justiça social, .amplo e vigoroso e assim fortalecer o convívio democrático. Somente assim poderemos criar uma nação como comunidade política de cidadãos.
Um passo que nos aguarda é transformar o programa Bolsa Família em um vigoroso programa de renda básica universal. Gostaria de concluir lembrando que, sem um conjunto articulado de políticas públicas e programas de cidadania, não aprofundaremos nossa democracia.
Tudo somado, a questão distributiva continua a ser o grande desafio para a conquista da democracia substantiva entre nós. E sem justiça social a democracia é frágil e vulnerável a regressões políticas e civilizatórias em sentido amplo e profundo.
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Pela terceira vez, Brasil lidera ranking de combate à fome
10/10/2011 - 6h27
Luana Lourenço
Repórter da Agência Brasil
Brasília - O Brasil lidera pela terceira vez o levantamento da organização não governamental (ONG) ActionAid, divulgado hoje (10), que lista os países que mais combatem a fome. Desta vez, o anúncio de mais investimentos para a agricultura familiar levou o Brasil ao topo do ranking. Malauí, Ruanda, Etiópia e Tanzânia completam as cinco primeiras posições.
O relatório lista resultados do Programa Fome Zero, que levou à redução da desnutrição infantil em 73% entre 2002 e 2008, e elogia a inclusão do direito à alimentação na Constituição Federal em fevereiro de 2010.
A iniciativa mais recente do país no combate à insegurança alimentar, segundo a ONG, foi o anúncio de R$ 16 bilhões para o Plano Safra da Agricultura Familiar 2011/2012, para investimentos na produção de alimentos, geração de renda no campo e organização econômica de agricultores familiares, assentados da reforma agrária e povos e comunidades tradicionais.
Apesar dos bons resultados, segundo a ActionAid, o Brasil precisa avançar na distribuição de terras, uma das mais desiguais do mundo. De acordo com o relatório, 56% da terra agricultável estão nas mãos de 3,5% dos proprietários rurais. Os 40% mais pobres têm apenas 1% dessas terras.
“O país precisa resolver a profunda desigualdade no acesso à terra e assegurar que os novos processos de crescimento não gerem novas exclusões por meio do deslocamento das populações. E ainda há 16 milhões de pessoas em situação de extrema pobreza, altamente vulneráveis à fome. Essas pessoas são profundamente excluídas, são necessárias políticas públicas muito específicas e desenhadas para esse grupo”, avaliou o coordenador executivo da ActionAid Brasil, Adriano Campolina.
Segundo ele, pode ser compartilhada com outros países a experiência brasileira em iniciativas de transferência de renda e políticas de proteção social e segurança alimentar, como os programas de merenda escolar e de construção de cisternas em regiões semiáridas.
Na avaliação global, o levantamento aponta que apesar de recentes avanços no combate à fome e à insegurança alimentar, o mundo está prestes a enfrentar uma agravamento da crise de oferta de alimentos. Entre as causas estão os efeitos das mudanças climáticas e a perspectiva de aumento de preço dos alimentos, que deverá levar mais 44 milhões de pessoas à pobreza. De acordo com a ActionAid, a demanda de terras para a produção de biocombustíveis deve continuar inflacionando o preço dos alimentos.
De acordo com Campolina, a crise econômica também deve frear os esforços internacionais de combate à fome. “Em um ambiente de crise há menos recursos disponíveis tanto para a ajuda externa quanto para o investimento doméstico em agricultura, o que pode levar a uma diminuição dos recursos que poderiam ser destinados à agricultura familiar e sustentável. Apesar que boa parte do que se ouviu até hoje sobre promessa de ajuda dos países ricos não constitui novos recursos”, acrescentou.
A ONG sugere que o G20 (grupo das 20 maiores economias do mundo) inclua a crise alimentar na pauta de sua próxima reunião, em novembro, em Cannes, na França, e se comprometa, por exemplo, a garantir investimentos às pequenas propriedades dos países pobres e a frear a especulação de terras para a produção de biocombustíveis.
“O G20 tem que tomar as medidas concretas para cumprir a prioridade de combater a fome. A prioridade não pode ser salvar grupos financeiros que especulam com commodities agrícolas ao custo da fome das populações pobres. É preciso investir em pequenos agricultores que produzem alimentos para consumo local e dinamizam mercados domésticos, apoiar a criação de estoques de alimentos nacionais e regionais e controlar a especulação financeira com produtos agrícolas”, defendeu o coordenador.
Edição: Graça Adjuto