Margem, que embute lucro, pode passar de 100% no Brasil; é preciso discuti-la
PEDRO KUTNEY
Especial para UOL Carros
Muito se fala a respeito da competitividade da indústria brasileira (ou da falta dela). Depois de perderem a camuflagem que o câmbio favorável garantiu até meados dos anos 2000, com o dólar cotado acima dos R$ 2, os problemas afloraram, com consequente queda de exportações e aumento de importações. A desvantagem cambial atingiu em cheio o setor automotivo no Brasil, que reclama, fazendo aparecer o discurso da competitividade. Mas, como de costume, os empresários colocam todas as culpas de suas mazelas em fatores externos aos muros das fábricas -- custos altos demais para produzir no país, logística capenga, impostos que comem um terço do preço de um carro, os maiores juros do mundo.
Tudo isso é verdade. Contudo, há outras verdades não ditas. Se os custos de produção de veículos aqui são até 60% mais altos do que na China, como revela um estudo de competitividade feito pela PricewaterhouseCoopers (PwC) por encomenda da Anfavea (associação das fabricantes), o que dizer das margens praticadas no Brasil, de 40% a quase 100%, embutidas nos preços de fábrica dos veículos? Isso é competitivo? E os produtos feitos aqui inadequados para exportação? Como vendê-los?
O custo da mão-de-obra também não fica atrás: em dólares, segundo o mesmo levantamento da PwC, é na média 342% mais alto do que na Índia e 305% maior do que na China. Porém, esqueceu-se de informar que o valor da hora trabalhada por um brasileiro em uma montadora é 87% menor do que nos Estados Unidos e na Europa. Para sermos competitivos precisamos ter salários como os dos indianos e chineses? Se fosse assim, haveria mercado de consumo suficiente para sustentar, por exemplo, os preços cobrados pelas fábricas?
No estudo de competitividade da consultoria PwC, que foi entregue ao governo, estão todas as desvantagens de se produzir carros no Brasil, incluindo materiais e mão-de-obra, que fazem o Brasil parecer o pior lugar do mundo para se construir uma indústria. Tudo é ruim, tudo é mais caro. Seria essa a explicação para se fabricar aqui os piores carros mais caros do mundo, com preços muito altos em comparação a outros mercados e pelo conteúdo inferior que oferecem.
MARGENS ESTRATOSFÉRICAS
É verdade que o custo brasileiro não está competitivo no exterior. De acordo com dados do Aliceweb, sistema do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior que armazena preços de importações e exportações, o valor médio de embarque (FOB) de um automóvel made in Brazil com motor acima de 1,5 litro, exportado para países da América do Sul no período de janeiro a maio deste ano, foi de US$ 10,5 mil.
A título de comparação, um chinês Chery Face 1.3 desembarca no Brasil com preço FOB (sem incluir frete, seguro e impostos) de US$ 7,1 mil, muito próximo do conterrâneo "completão" JAC J3 Turin, que chega ao porto por US$ 7,7 mil. A diferença, como se vê, é grande. Contudo, para competir com a China, o Brasil teria de decretar uma ditadura, controlar o câmbio e pagar mal seus trabalhadores. Melhor esquecer isso.
MARGEM NA IMPORTAÇÃO DE CARROS AO BRASIL
MODELO
ORIGEM
PREÇO DE NACIONALIZAÇÃO
PREÇO FINAL
MARGEM
Chery Face
China
R$ 17.800
R$ 33.000
85%
Chery QQ
China
R$ 12.400
R$ 23.000
86%
Fiat Siena
Argentina
R$ 29.700
R$ 41.300
39%
Ford New Fiesta
México
R$ 27.000
R$ 51.400
90%
JAC J3 Turin
China
R$ 19.300
R$ 39.900
106%
O problema é quando esse carro nacional exportado compete com ele mesmo no mercado nacional. Partindo do preço FOB médio de exportação de um carro 1.6, de US$ 10,5 mil, após aplicar a carga tributária brasileira, a maior do mundo sobre automóveis, esse mesmo veículo custaria R$ 24,4 mil, considerando que o exportador já colocou seu lucro no valor. Pois no Brasil não se acha um modelo 1.6 por menos de R$ 33 mil (equivalente a um Volkswagen Gol "peladão"), valor 36% mais caro. A margem, portanto, ainda é bastante elástica para competir no mercado interno.
O que não se ouve dos dirigentes da indústria automotiva nacional, em nenhum momento, é a admissão de que os produtos feitos aqui não servem para ser exportados não só por causa do custo, mas também porque foram pensados e projetados para oferecer o menos possível pelo maior preço possível. Poucos mercados no mundo compram veículos assim, o que significa uma dificuldade de exportação maior do que qualquer desvantagem cambial.
E até os brasileiros querem coisa melhor: prova disso é crescente aumento no país da preferência por modelos mais bem equipados e com motorização superior a 1 litro, que pela primeira vez em mais de uma década superaram as vendas dos chamados "carros populares", com mais de 52% dos emplacamentos de novos.
ABISMO DE VALORES
Muitos desses carros (20%) são importados e alguns deles conseguem chegar ao Brasil custando menos do que os nacionais, mesmo pagando imposto de importação de 35%, como é o caso dos chineses. O estarrecedor é verificar como os importadores também praticam margens estratosféricas no Brasil.
Para ficar com os mesmos exemplos, o preço de nacionalização do JAC J3 Turin (após todos os impostos II, IPI, ICMS e PIS/Cofins) fica em R$ 19,3 mil para o importador, mas ele é vendido por quase R$ 40 mil, com margem de 106%. No caso do Chery Face esse porcentual é de 85%: o modelo salta de R$ 17,8 mil na importadora para R$ 33 mil nas lojas. O mesmo acontece com o carro mais barato à venda no Brasil, o Chery QQ, que chega com preço FOB de US$ 4,4 mil, é nacionalizado por R$ 12,4 mil e depois é vendido por R$ 23 mil, 86% mais.
Há também interessantes exemplos de montadoras importadoras. A Ford traz do México, sem pagar imposto de importação, o New Fiesta, com motor 1.6 feito no Brasil, pelo preço FOB de US$ 11,4 mil, nacionaliza o modelo por R$ 27 mil e cobra R$ 51,4 mil do consumidor (margem de 90%). A Fiat monta o Siena na vizinha Argentina, com motor e muitos componentes brasileiros, e traz a versão Essence por US$ 12,9 mil (FOB), que após aplicação de impostos ficaria em R$ 29,7 mil, mas vende por R$ 41,3 mil (39% de margem).
E qual o segredo para vender o carro relativamente mais caro do mundo? O crédito, que mesmo com os juros mais altos do mundo acomoda em suaves prestações que cabem no bolso todas as assimetrias de custos, preços e bobos do mercado brasileiro.
CUSTO VS. LUCRO
Por mais que nessas margens de venda estejam incluídas despesas comerciais, publicidade e marketing, lucro dos concessionários (dizem que não passa de 5% e pode ser zero), as diferenças parecem grandes demais. Cledorvino Belini, presidente da Anfavea, ao apresentar o estudo da PwC deu uma pista do porquê: "Os custos de remuneração de capital no Brasil são os maiores do mundo", disse. Ou seja, para compensar os investimentos feitos aqui e ganhar mais do que em aplicações financeiras, a rentabilidade de um negócio precisa ser também das mais altas do mundo.
A corporação que Belini dirige no Brasil, a Fiat Automóveis S.A. (Fiasa), sabe bem disso. Em 2010 a Fiasa reportou lucro líquido de R$ 1,6 bilhão, o que significa margem de 7,7% sobre o faturamento de R$ 20,7 bilhões. No mundo todo, montadoras ficam muito contentes quanto obtêm margem de 5%. O Grupo Fiat, por exemplo, contabilizou 3,9% no ano passado. (Das outras fabricantes instaladas no Brasil nada se sabe a respeito, pois os lucros apurados aqui são tratados como informações de caixa-preta e ficam escondidos no meio dos balanços globais; a Fiat é a única que publica balanço separado no Brasil.)
Portanto, se os custos são altos no país, os lucros também são. Uma mostra disso são as remessas de dividendos de fabricantes de veículos às suas matrizes. Segundo dados do Banco Central, de janeiro a maio deste ano foram remetidos US$ 2,3 bilhões, o dobro do que foi enviado no mesmo período de 2010. Com esse valor, a indústria automobilística é o setor que mais pagou lucros aos controladores estrangeiros neste ano.
Lucrar não é desonesto, mas as montadoras tratam disso como se fosse, pois escondem esse número aqui o quanto podem. Não seria por outro motivo que, apesar dos custos não competitivos, o Brasil continua bastante interessante, com um horizonte de mercado em mais três ou quatro anos de 6 milhões de veículos vendidos por ano com uma grande margem embutida em cada um deles. Tanto que mais de uma dezena de montadoras têm planos de ampliar a produção e construir novas fábricas no país -- como a Fiat em Suape (PE), a Chery em Jacareí (SP), a Hyundai em Piracicaba (SP) e a Toyota em Sorocaba (SP), só para citar os maiores investimentos.
Antes de reclamar do "Custo Brasil", seria interessante aumentar a transparência, colocar todas as verdades sobre a mesa, como a que diz respeito ao custo do trabalho no Brasil, de US$ 7,70 por hora, contra US$ 1,74 na Índia segundo a Anfavea, mas de no mínimo US$ 15 nos Estados Unidos (o salário mais baixo atualmente numa montadora), podendo chegar a US$ 60 na General Motors e US$ 55 na Toyota. Essa não é uma vantagem competitiva e tanto?
O que queremos ser passa necessariamente com o que queremos nos comparar. Seremos um país de baixo custo e, por consequência, de baixo consumo? É preciso discutir honestamente o quanto cada parte (indústria e governo) pode ceder, para que ninguém tenha que se passar por bobo na hora de negociar custos e preços. Assim o país pode evoluir para os melhores exemplos, não os piores.
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Pedro Kutney, jornalista, é editor do portal Automotive Business, onde este artigo foi publicado originalmente sob o título "Os custos, os preços e os bobos"
http://carros.uol.com.br/ultnot/2011/07 ... mprar.jhtm
Lei do mercado: os carros (ou carroças) não vão ficar mais baratos
JORGE MEDITSCH
Colaboração para UOL Carros
Em 1994, voltei para o Brasil depois de passar alguns anos nos Estados Unidos como correspondente. Foi um choque. O país vivia a festa do real, a nova moeda, supervalorizada e, aparentemente, abundante. Os salários da classe média brasileira estavam mais altos do que os dos americanos com funções semelhantes e os preços daqui, absurdamente mais altos do que lá.
De forma menos intensa, estamos vivendo uma época semelhante. A disponibilidade, seja de dinheiro no bolso ou de crédito a longo prazo, ajuda as vendas a aumentarem. Vendem-se mais carros, imóveis, roupas, viagens e até comida. E, como há milênios todo mundo sabe, maior a procura, maiores os preços.
Quando retornei ao Brasil, a indústria automobilística não estava conseguindo atender à demanda. O ágio reinava. Os carros populares, ainda uma novidade, que eram tabelados por volta dos R$ 8 mil, eram vendidos por R$ 11 mil ou mais. E ninguém deixava de comprá-los. Quem tinha um pouco mais de dinheiro pagava preços absurdos por importados, muitas vezes de qualidade baixa, apenas pela novidade.
Hoje, as vendas de automóveis continuam crescendo, mesmo que num ritmo menor que há um ano. A maioria dos fabricantes no Brasil trabalha no máximo de sua capacidade e continua a investir em novas instalações e na ampliação das já existentes. Com os consumidores dispostos a comprar, não dá para enxergar razões para que eles, seus revendedores e financeiras pensem em reduzir suas plácidas margens de lucro.
Ninguém discorda que, no presente, o Brasil é um dos países mais caros no mundo para se viver. A carga de impostos e a infraestrutura oferecida em troca chegam a lembrar o tempo do Brasil colônia, quando a maioria da arrecadação ia para Lisboa e, por aqui, faltavam estradas, segurança, saneamento e educação. Quem viaja para os Estados Unidos e Europa deveria dar um tempo nas suas visitas aos shopping centers para dar uma olhada nos supermercados -- neles, vai descobrir que pão, leite e outros alimentos básicos são mais baratos por lá do que aqui. Não é só o Big Mac.
O BARATO FICOU CARO
Além de pagar caro, nós, brasileiros, estamos condenados, pelo menos por algum tempo, a comprar veículos já superados tecnicamente. Nossos carros são menos confortáveis, consomem e poluem mais e são muito menos seguros do que os lançados no exterior nos últimos cinco ou dez anos. A razão é que os grandes grupos internacionais têm políticas globais e o Brasil foi escolhido para ser um grande fabricante de carros baratos, para serem vendidos por aqui mesmo ou para países de baixa renda.
O que está provocando reações da indústria é que o "Custo Brasil" disparou, inviabilizando a venda de nossas carroças motorizadas no exterior. Pelos preços que têm, os automóveis brasileiros competem com produtos muito mais modernos, econômicos, melhor equipados e mais seguros, fabricados em outros países. E a diferença já é tanta que, mesmo aqui, carros que pagam 35% de impostos de importação conseguem ser competitivos.
Economia é um campo muito complexo. Preços são regulados por vários fatores, além dos impostos e dos custos de produção. Concorrência é um fator que pesa muito: produtos melhores por menor preço ou produtos equivalentes por preço menor provocam redução nas margens de lucro e melhoria na qualidade dos automóveis. Pode ser que a chegada de novas marcas ao mercado brasileiro acabe ajudando nesse sentido.
O QUE INTERESSA É VENDER
É bom lembrar, no entanto, que a maioria dos carros importados é trazida pelos grandes fabricantes, que aplicam a eles margens de lucro ainda maiores que as obtidas nos nacionais -- uma forma de manter os produtos locais competitivos. Há uns cinco ou seis anos, fiz uma matéria sobre o Volkswagen Jetta, fabricado no México, um carro que, na época, era um derivado do Golf duas gerações mais novo que o fabricado no Brasil, mas custava pouquíssima coisa mais que a versão mais cara do hatch nacional. Mais potente, mais equipado, mais confortável e mais seguro.
Alfred Sloan, que comandou a General Motors por muitas décadas, disse uma vez que a razão de ser da indústria automotiva não é fabricar carros, mas vendê-los. Uma obviedade, mas que muita gente esquece: empresas existem para ter lucro. Enquanto os consumidores tiverem condições e estiverem dispostos a pagar caro e os cidadãos não pressionarem efetivamente para que os impostos diminuam, os preços não vão cair. Nem os dos carros, nem os dos imóveis, eletrônicos, leite, pão, carne, feijão e arroz.
Jorge Meditsch, jornalista, é editor do site AutoEstrada e colunista da revista Auto Esporte. Trabalhou nos Estados Unidos como correspondente de pubicações brasileiras.