A cultura suméria, assíria e helênica, em geral, o povo da antiga Mesopotâmia, conforme E.A.Speiser, deixou um legado imemoriável para a vida moderna,
pois se temos, ainda, esperança em normas criadas de forma despersonalizadas devemos muito à este povo, pois influenciaram o Mundo Clássico, e assim a própria civilização ocidental como um todo[1].
Na Mesopotâmia originaram-se os primeiros textos referentes as normas escritas de conduta da sociedade humana, alguns dirão que eram Leis, outros tantos dirão que não passaram de propagandas e que acabara servindo de registro para a prosperidade,
porém todos concordam que a forja da origem do que viria a ser o conceito de Lei no ocidente foi esculpida na terra entre os grandes rios Eufrates e Tigre.
Objetivamente, os textos em linguagem criptográfica esculpida em estelas estabelecem um registro da teorização da legitimação do poder real nas civilizações antigas da Mesopotâmia, e um exemplo prático deste direito primitivo.
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Em 2350 a.c., reconhecidos por muitos, como o primeiro registro histórico de codificação de normas, e também a primeira reforma social temos o Código de Urukagina ou Uruinimgina. Auto-denominado de Rei de Lagash ou Sumer, cidade da antiga Mesopotâmia.
Historiadores renomados, como o mais experiente em história e linguagem sumérica, Samuel Noah Kramer,
apontam o texto de Urukagina como um dos mais precisos documentos de combate à tirania e a opressão do poder da história humana, em todos os possíveis sentidos, e também, como o primeiro registro da concepção da idéia de liberdade, pela palavra amargi, epistemologicamente definida como o “retorno para a mãe”[5].
Este Código tem uma importância histórica relevante, sobretudo por representar um
mecanismo legal de limitação dos poderes dos sacerdotes, dos altos funcionários públicos, estabelecendo meios concretos de justiça social, pela garantia, dentre outros, de direitos aos cegos, pobres, viúvas e outros. No prólogo do Código está escrito: “El poderoso no oprimirá al huérfano y a la viuda: pues tal pacto ha establecido Urukagina con Ningirsu.”[6]
É um importante legado para o mundo ocidental, pois iniciou a idéia tradicional de
conceber uma base legal a justiça como justificativa de possibilitar uma vida com mais dignidade aos cidadãos, conforme aponta Enrique Nardoni[7]. É o próprio
nascedouro da idéia moderna do liberalismo: a legitimidade da ordem política no direito, ou seja, para os cidadãos serem dignos de um Estado e o Estado ser digno de seus cidadãos, o direito deve dar as condutas necessárias para a concreção desta dupla dignidade.
Trezentos anos depois, em 2050 a.c., já no período da Renascença do período Neo-sumério, Ur-Nammu, com a morte de seu irmão, o rei UtuKhegal, proclamou a independência de Ur do reino de Uruk. Auto-declarou-se rei da cidade de Ur, fundando assim a terceira dinastia de Ur, que perdurou de 2112 à 2004 a.c.. Ur-Nammu reinou por 18 (dezoito) anos, e seus descendentes governariam por mais de 90 (noventa) anos consecutivos.
Diferente dos outros reinos, o de Ur-Nammur foi construído utilizando-se de uma estratégia pacifista, a da reconstrução dos templos destruídos das cidades vizinhas a Ur, os chamados zigurates, e como demonstração de agradecimento dos cidadãos que se davam como salvos, era aclamado rei.
O
Código de Ur-Nammu, uma compilação dos costumes antigos acumulados culturalmente, foi escrito, na verdade, como dito por especialistas, por seu filho Shulgi. No prólogo aclamou o Rei como o estabilizador da equidade, e aquele que baniu a maledicência e a violência[8]. O Código teve como principal tema a reversão das penas ditas talianas em sanções pecuniárias, dando assim a origem do instituto da indenização, e a escrita em forma de sentença condicional, o que importa em dizer que se alguém fizer “isto” será penalizado com “aquilo”[9].
O Código de Eshnunna, de 1930 a.c., traz uma referência ao nome da cidade e não ao nome de um legislador específico. A cidade de Eshnunna com a queda da terceira dinastia de UR passa a ter significância econômica, sobretudo pela posição geopolítica na antiga Mesopotâmia, e se fortaleceu com os reinados bem sucedidos e sucessivos de Naram-Sin, Dadusha e Ibelpiel II.
As compilações estão em duas estelas, encontradas na cidade que atualmente se chama Tell Armar. Os cripotologos ainda não chegaram a um consenso, mas a maioria define que uma das estelas fora esculpida no reinado de Dadusha, conforme informações de Reuven Yaron[10].
O Código traz cerca de 60 artigos sobre variadas temáticas, incluindo um sistema de cortes de julgamento, funcionamento do reino e do palácio, escravidão, casamento e divórcio, interferência do poder real no domínio econômico para coibir altas dos preços de alimentos[11], e serviu de base para a elaboração do Código de Hammurabi.
Aproximadamente em 1.870 a.c. temos o Código de Lipit-Ishtar de Isin[12], que não fora escrito em Estela mas sim em sun-baked clay tablet, o seu prólogo é um exemplo de como as normas eram manifestações de auto-promoção real[13].
Estava então registrada na historia do homem a serviniência da Lei à imagem de seu legislador, o que na contemporaneidade volta a ser fenômeno freqüente, com políticos instados a criarem Leis para mero deleite de seus eleitores, mesmo que não sejam aplicadas concretamente. Revoluções legais são anunciadas com aprovações nas Casas Legislativas, mesmo que a evidência seja que a Lei não será sequer sancionada.
Após, temos
Hammurabi, que sucedeu no trono da Babilônia com a morte de seu pai, reinou absoluto por 43 (quarenta e três) anos, e foi elo forte de uma dinastia que perdurou por mais de 300 (trezentos) anos. Teve inegavelmente como principal legado o Código que perdurou por anos como sendo o primeiro a ser elaborado na história, mas jamais perecerá quanto ao ser o mais estudado e assim o mais importante de todos os primitivos.
A descentralização da administração prevista no Código pode ser exemplificada na distribuição de cópias do próprio código ao longo do reino. Dos que restaram, o exemplar mais magnífico é a estela de diorito negro, com quase 2 metros e 30 centímetros de altura, que atualmente está no museu do Louvre. Esta relíquia foi encontrada por J. De Morgan, arqueóloga francesa, no final do ano de 1901.
As exaltações ao poder do Rei encontradas nos epílogos dos Códigos de Lipit-Ishtar e Hammurabi assemelham-se de tal maneira que alguns acreditam, como A.S Diamond, que sejam na verdade um só texto, somente com a diferença do de Hammurabi estar escrito em accadian.
Já as diferenças dos corpos legais dos Códigos demonstram um avanço inegável da técnica legislativa em Hammurabi: temos a melhor distribuição das matérias tratadas em um grande número de dispositivos (282) em tópicos temáticos que formulam uma nova e melhor sistemática do que até então existia, e ainda, uma linguagem que alcança a perfeição, como ponderou A.S. Diamond[14].
O ano de 1760 a.c. é dito pela maioria como o de elaboração do Código. O primeiro aspecto é sobre a importância, ressaltar ingenuamente que a lei do talião (olho por olho e dente por dente) é a instituição da barbárie é desconsiderar que em tempos remotos somente a descrição de penas já retiraria das mãos do Rei a possibilidade de exercer o poder de forma totalmente arbitrária.
A leitura do Código traz algumas possibilidades de entendimento das características organizativas da civilização, como o indicio da preocupação em relação as fraudes de processos judiciais, a responsabilidade ao extremo pela instituição da pena capital; a descentralização da administração pela organização em circunscrição; a legitimação da escravidão; possibilidade de venda de mulher e filhos; um sistema de contratos parecido com o atual, sobretudo o de depósito inclusive com responsabilidade patrimonial; a figura mística do rio presente como demonstrador da verdade. Enfim, as normas tinham efeito concreto (a razão da quantidade), parecendo mais sentenças do que Leis, o que alguns denominam de estilo casuístico.
Este estilo casuístico que perdura em todos os códigos primitivos seria uma conjunção das duas grandes famílias dos sistemas do direito contemporâneo, a common law e a civil law, pois a abstratividade é baseada em um precedente. Não existindo ainda a abstratividade normativa em sua plenitude, mas a descrição das normas em estelas, algo constante e material, acarretaria uma modificação no modo de pensar as Leis e sua relação com os afetados.
As normas não mais estariam totalmente no abstrato, já não seriam mais ditadas na eminência do acontecimento. Resultaria daí um grande avanço na segurança jurídica pela possibilidade, inexistente até então, de uma previsibilidade aplicativa das normas, mesmo que em alguns casos fosse mínima.
A poder de coerção destas normas resultava no medo imbuída a população não de ser punido pelo Estado, mas pelos Deuses da cidade. Assim os Reis, que exerciam a função de sacerdotes receptores das Leis divinas, impuseram a ordem e a obediência cultuando o medo da vingança das divindades e conseguiam serem obedecidos religiosamente, como bem aponta Antonio Carlos Wolkmer[15].
O principal efeito desta prévia existência despersonalizada das normas tanto a quem ordena como à quem seriam ordenadas é de que a origem dos textos legais é marcada pela simultaneidade da origem do conceito que eles deveriam ser impessoais, ou seja, desde o direito cuneiforme a Lei para ser Lei deve ser impessoal.
Ao comparar o direito cuneiforme com outros de diferentes épocas, John Sassoon, já concluíra que as normas das sociedades do ocidente não evoluíram numa linha paralela ao desenvolvimento da complexidade social. Assim o Código de Eshununna seria comparável em termos de reconhecimento dos direito humanos à situação legal da Inglaterra de 1.150 d.c., assim como Código de Hammurabi representaria a Inglaterra de 1.250 d.c.[16].
A criticidade a respeito da natureza das inscrições presentes nas estelas é feita pelo professor Emanuel Bouzon que esclarece que tais normas representariam a ideologia do rei, num caráter auto-promocional, e significariam a intervenção do rei na sociedade e na economia, com fim propagandístico da imagem real como um garantidor da justiça, como se denota nos prólogos[17].
A existência destes códigos seria a ocasionada pela necessidade de transmissão com maior facilidade às futuras gerações dos costumes de conduta, e algumas estelas denotam ser na verdade não lei propriamente dita, mas registro histórico realizado por escribas num exercício meramente acadêmico.
Bouzon ainda ressalta que a assirióloga S.Lanfont no Colóquio de Strasbourg introduziu a idéia de que os Códigos seriam utilizados de forma subsidiária, com um caráter complementar as prescrições locais (costumes). É bom lembrar que a polêmica acadêmica sobre a natureza destes textos ainda perdurará assim como a certeza de que os mesmos exerceram influência no modo ocidental atual de pensar a Lei.
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