O poderoso que sucumbiu ao sexo fraco
Strauss-Kahn tinha uma fraqueza: as mulheres. Acusado de agressão sexual, deixou a direcção do FMI e o rumo da Europa.
22 Maio 2011
O caso tem contornos de policial de série B: inclui uma emigrante africana, um europeu influente, um hotel de luxo e a alegada agressão sexual na cidade americana conhecida por punir os fortes e dar voz aos fracos. À esquerda fala-se em cilada política; à direita num homem com uma vulnerabilidade: as mulheres. Levará tempo a apurar a verdade. Mas o julgamento popular está feito: Dominique Strauss-Kahn, o todo-poderoso director do Fundo Monetário Internacional (FMI), sucumbiu à sua fraqueza.
Na quinta-feira foi formalmente acusado de tentativa de violação, agressão sexual e sequestro por uma empregada de hotel em Nova Iorque. Ficou em prisão domiciliária, mediante fiança de um milhão de euros, e teve de se demitir. "Em termos políticos, o efeito desta situação é o fim da sua carreira, pois a visibilidade negativa é enorme", garante o politólogo António Costa Pinto.
QUEDA DO PODER
Vítima do mediatismo, o senhor ‘chaud lapin' (‘coelho quente'), como lhe chamam os detractores numa alusão às suas conhecidas ‘conquistas', foi detido no avião da Air France com destino a Paris, algemado e apresentado via TV ao Mundo. Mais tarde foi presente a uma juíza, que decretou a sua prisão preventiva em Rikers Island, albergue de assassinos, traficantes e violadores, e onde está o português Renato Seabra, acusado da morte de Carlos Castro.
Apesar de aguardar agora julgamento em casa, DSK - como é conhecido - foi forçado a deixar o cargo que ocupava desde 2007. Abriu assim a guerra interna pela direcção do FMI, agora disputada entre a Europa (que a assume por tradição), os países emergentes - China, Brasil e Índia (que manifestaram intenção de poder) - e os EUA (prontos a gerir um conflito).
"Com esta dimensão, este caso só poderia acontecer nos EUA", frisa Costa Pinto. "Lá, o poder judicial e local sobrepõe-se a qualquer figura pública. Mas mesmo que ocorresse na Europa, onde a imagem da detenção seria menos visível, anularia sempre a carreira política de Strauss-Kahn". Até dia 14 de Maio, data da denúncia, ele era também potencial candidato às eleições presidenciais em França, pelo Partido Socialista francês, e o único capaz de eliminar o presidente Nicholas Sarkozy à primeira volta, segundo as sondagens. "Agora acabou e poderá ter repercussões em França e no equilíbrio de poderes do FMI e da Europa".
INTRIGA POLÍTICA
"Sexo e intriga política é um clássico", adianta Costa Pinto, citando os casos do ex-presidente norte-americano Bill Clinton ou do primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi. "O que distingue este caso é a violência das acusações e o facto de se tratar de um crime sexual, raro na política contemporânea, apesar de fazer parte da história dos ditadores", adianta.
Vânia Beliz, sexóloga, explica a possibilidade de as acusações serem reais: "Pode ser uma patologia. Mas pessoas em situação de poder, com muita responsabilidade e pressão, podem ter tendência a extravasar os seus impulsos de forma pouco normal, por necessidade de afirmação, de dominar o outro, de dizer ‘eu mando'. Não sei o que se passou neste caso, mas há na sociedade actual uma crescente procura de sexo agressivo por parte de pessoas em situação de poder". E o poder marcou sempre o percurso deste homem, pai de quatro filhos: três raparigas e um rapaz.
Dominique Strauss-Kahn nasceu em 1949 em Neuilly-sur-Seine, subúrbio rico de Paris, numa família de judeus influentes. O pai, jurista, foi membro do Grande Oriente de França e a mãe uma jornalista de origem russa e tunisina. Ser cosmopolita era um estilo de vida. DSK viveu em Marrocos até aos seis anos, quando o terramoto que arrasou Agadir levou a família para o Mónaco. Voltaram a França, onde Dominique estudou Direito e Economia. Iniciou a sua carreira como professor, foi advogado, mas ainda estudante despertou para a vida política, primeiro na União Comunista e depois no Ceres, centro de estudos e educação socialista, onde conheceu Lionel Jospin, antigo líder do Partido Socialista francês e primeiro-ministro.
A defesa do crescimento económico levou-o a ministro da Indústria (1991-93) e da Economia, Finanças e Indústria (1997-99). Entretanto, em 1994 integra o Cerce, lobby da indústria francesa em Bruxelas liderado por Raymonde Lévy, então director da Renault. A proximidade a empresários e milionários de influência duvidosa originou grandes críticas e devolveu Strauss-Kahn à política.
Em 1995 preside à câmara de Sarcelles e casa em terceiras núpcias com Anne Sinclair, antiga jornalista francesa, neta de um famoso marchand e dona de uma invejável colecção de arte, que inclui Picassos e Rembrandts. O luxo e o gosto burguês marcam, aliás, a vida do casal. Dias antes de estalar o escândalo de Nova Iorque, DSK foi fotografado a guiar um Porsche - que estava em nome do seu assessor - e a comprar fatos caros no alfaiate que veste o presidente dos EUA, Barack Obama.
O próprio, em Abril, em entrevista ao jornal ‘Liberation', admitiu que "o dinheiro, as mulheres e o ser judeu" eram os seus pontos fracos, passíveis de ser usados pelos rivais. "Imagino uma mulher a quem é dado um milhão de dólares para dizer que a violei num parque de estacionamento", vaticinou então.
SUITE 2806
O que se passou em concreto na suite 2806 do hotel Sofitel, em Times Square - cuja diária custa cerca de dois mil euros -, ainda está por apurar. Certo é que uma empregada de limpeza garante ter sido agredida por Strauss-Kahn. Da parte do hotel dirigido pelo português Jorge Tito não há comentários, apenas um comunicado que nota "a colaboração com as autoridades" e dá "boas referências" da mulher que ali trabalha há três anos.
Identificada em blogues como Nafissatou Diallo, guineense de 32 anos e residente no Bronx, a vítima conta que ao entrar no quarto, que pensava estar desocupado, foi atacada por um homem nu, que surgiu do quarto de banho e a forçou a ter sexo oral e anal. O agressor terá tentado ainda o sequestro e o toque vaginal. Após a recusa inicial dos factos, a defesa, a cargo de Benjamin Brafman - advogado que defendeu Michael Jackson num caso de pedofilia - alega agora sexo consentido. A vítima mantém a tese de agressão.
A TENTAÇÃO DA MAÇÃ
O caso levanta suspeitas por ter sido denunciado em primeira-mão no Twitter de Jonathan Pinet, jovem militante do UMP, partido de Sarkozy, e envolver uma figura tão proeminente. Confirme-se ou não a tese de complô, DSK "provou a maçã. Pode ter sido tentado, mas caiu na tentação", afirma o psicossociólogo Luís Rodrigues.
"Quando há um agressor ele reage a estímulos. Não sabemos o que aconteceu neste caso, trata-se de peixe muito graúdo, a quem alguém instruído pode causar tentação. Agora, no campo meramente psiquiátrico esta pessoa teve um comportamento animalesco, possível em qualquer ser normal. Em termos hormonais, a situação do homem é sempre de macho, o galo, o coelho. E numa cidade absolutamente anónima, como é Nova Iorque, alguém pode ter dado um estímulo que ele leu erradamente ou montado uma cilada", conta o professor que trabalhou na ‘Big Apple' ao serviço da ONU.
"Nos EUA o denunciante tem um poder fortíssimo, está tudo assente na litigação. E no mundo da alta finança, muito próximo da política, uma das grandes armas é um cabaré pronto a actuar. Neste caso a condenação é muito forte", frisa. E choca que "um homem com um percurso político tão bem feito, em termos de competência, tenha esse comportamento primário. Ele representa uma esquerda moderada, órfã de Olof Palme e Willy Brandt, uma figura ‘saudífica', que só a prática confirmaria, mas cuja condenação absoluta, seja qual for o desfecho, abana a Europa social-democrata".
FAMA DE LIBERTINO
O percurso humanista de um homem que defendia "reformas para manter a estabilidade e servir a comunidade internacional" e lamentava que "no fim do dia, os pobres estivessem sempre mais pobres", choca com a fama de libertino. DSK vendia a imagem de sedutor e apregoava: "Gosto das mulheres, que mal tem?". Mas junto dos seus pares a leitura é outra.
Mal se soube do caso de Nova Iorque surgiram mais acusações. A primeira foi da escritora francesa Tristane Banon, que em 2007 tentou denunciar o político num programa de TV. Na altura, a jovem, filha de uma militante do PS, contou a tentativa de abuso durante uma entrevista: "Pegou-me na mão, rasgou-me o sutiã e tentou abrir os jeans. Acabámos à pancada. Parecia um gorila com cio". Na altura o nome de DSK foi censurado, mas dia 15 Banon avançou a denúncia num blogue e prepara um processo judicial.
Em 2008 foi a economista húngara Piroska Nagy que o acusou de abuso de poder. Os dois tiveram uma relação extraconjugal enquanto trabalhavam no FMI. Em resposta a um inquérito pedido pelo marido de Piroska, esta alegou ter sido "coagida. Ele não tem condições para chefiar uma instituição onde trabalham mulheres". DSK retractou-se publicamente e manteve-se no FMI.
Agora surgem na blogosfera novas ‘amantes' de Strauss-Kahn: Carmen Llera, viúva do escritor italiano Alberto Moravia, e a escritora Yasmina Reza. A deputada socialista Auriele Filipetti fala de "vários apalpões" e rumores antigos colocam DSK como assíduo na casa de alterne Les Chandelels. No livro ‘Sexus Politicus', o jornalista Jean Quatremere descreve Strauss-Kahn como alguém "com queda para a sedução, o que no seu caso se torna numa obsessão".
Kristin Davis, a ‘Madame Manhattan', admitiu à BBC ter-lhe fornecido ‘meninas' em 2006. "Pagava 1200 dólares por duas horas de sexo em hotéis, mas era agressivo". Incólume, Anne Sinclair defende o marido e recusa "acreditar numa só palavra".
CULTURA DE REI
O silêncio da imprensa francesa é justificado pela "tradição da Europa continental, que tende a preservar a vida privada dos seus políticos", diz o historiador Fernando Rosas, do Bloco de Esquerda. "Há de facto escândalos sexuais recorrentes neste tipo de elites e isso poderá dizer alguma coisa sobre a sua natureza, mas enquanto não for condenado é presumível inocente. O que está em causa aqui é a sucessão no FMI, que pode afectar os critérios de política de atribuição de fundos, e o facto de se tratar da queda de um homem que está no cume da política internacional. Strauss-Kahn discutia com chefes de Estado, tinha mais poder do que alguns deles, e de repente surge algemado aos olhos do Mundo".
Por seu lado, a jurista Teresa Morais, do PSD, frisa que, "por ser uma figura pública, esta detenção ultrapassa as fronteiras pessoais e tem impacto na imagem do FMI". A ser verdade, "há aqui uma manifesta situação de desigualdade. Nesse aspecto os EUA tratam o assunto com mais frieza do que a Europa, que poupa os vícios privados das suas personalidades. Julgo que desse ponto de vista, a Europa não faz bem. O sucessor de Strauss-Kahn no FMI deve agora ter uma imagem incólume".
Também o socialista José Lello destaca o impacto forte no FMI. "Sem DSK são maiores as pressões americanas. Ele alterou profundamente a irredutibilidade monetarista liberal que era prática do organismo e a sua detenção foi um tsunami com consequências gravíssimas".
Para o economista João Cantiga Esteves, "o FMI deve dar continuidade à política e aos processos em curso com Grécia, Irlanda e Portugal. Julgo que este evento vai precipitar um sério debate a nível mundial".
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