O amor, ao que tudo indica, é o sentimento mais forte de que é capaz a psiquê (alma, em grego). Ele costuma atropelar e arrastar outros sentimentos com ele em seu caminho. As sensações que provoca podem ser deliciosas, mas também podem ser dolorosas, assustadoras. Com ele, caminham medos e esperanças. Com ele, caminha também um persistente ceticismo. Ou, o que é pior, um solerte cinismo.
Muita gente teme a "aventura" do amor e prefere renunciar a ela. O prejuízo é grande: o conhecimento da condição humana sofre com a perda da possibilidade de viver uma experiência humana fundamental. No entanto, a "aceitação" da "aventura" nos põe diante de problemas e riscos consideráveis. Como "aceitar" os sentimentos sem se descartar deles, sem subestimar o tesouro de significações que eles nos trazem, tanto quando os vivemos pelo outro como quando o outro os vive por nós? E, ao mesmo tempo, como evitar a ilusão de se instalar numa desmesurada exaltação desses sentimentos - numa embriaguez ou num êxtase - que resultaria no abandono das questões que envolvem a criação de valores no interior mesmo dos afetos, quando pensados historicamente?
Alguém aqui conseguiria viver o amor como Sartre e Simone de Beauvoir o viveram?
Simone de Beauvoir: o essencial e o contingente
Se você não me queria,
Não devia me procurar,
Não devia me iludir,
Nem deixar eu me apaixonar.
Monsueto e Airton Amorim
O que dizer de uma relação amorosa que uniu ao longo de 51 anos uma escritora e um escritor importantes? Como teria sido a vida de Simone de Beauvoir se ela não tivesse encontrado Sartre, em 1929, na Escola Normal Superior? A própria Simone responde: "Não sei. O fato é que o encontrei e esse foi o acontecimento capital de minha existência"(1).
Simone publicou seu primeiro romance, A convidada, em 1943, e sua primeira peça de teatro, As bocas inúteis, em 1945. Seu ensaio sobre O segundo sexo, lançado em 1945, tornou-a famosa: ela passou a ser o centro da maior parte das discussões suscitadas em torno do feminismo na Europa do pós-guerra.
A popularidade maior, contudo, era a que lhe vinha do pacto que havia feito com Sartre. Eles não dissimulariam nada e seriam sempre verdadeiros no diálogo entre eles. Sartre argumentava: o amor que os unia era o amor "essencial". Convinha, no entanto, que ambos estivessem abertos para amores "contingentes", que não se confundiam com aventuras passageiras, desprovidas de importância.
O grande público, incluindo pessoas que não haviam lido nada dos dois escritores, queria saber se o pacto seria respeitado, se aquele tipo de relação era viável, e se cabeças intelectualizadas resistiriam ao ciúme.
Sartre ficou entusiasmado com Simone. Disse ela: "O que é maravilhoso em Simone de Beauvoir é que ela tem uma inteligência de homem e uma sensibilidade de mulher"(2). Os princípios em que o pacto se baseava não foram adotados em decorrência de uma pressão de Sartre sobre Simone, já que correspondiam plenamente a convicções que ela já possuia. Simone recusava liminarmente o casamento como instituição e insurgia-se contra a imposição da monogamia.
Nos anos que se seguiram, ficou claro que Sartre aproveitou bem mais do que Simone a liberdade de cultivar amores contingentes. Uma lista incompleta desses amores incluiu a atriz Simone Jolivet, Maria Girardi, Dolores Vanetti (atriz e ex-amante de André Breton), Wanda (irmã de Simone de Beauvoir e que se tornou atriz com o nome de Marie Olivier), a russa Olga Kosakievicz, Renée Ballon (ex-amante de André Malraux), Louise Vedrine, Michelle, Évelyne e Arlette El-Kaimk (que tinha apenas dezessete anos de idade na época).
Os amores contingentes de Sartre eram lealmente comentados por ele com Simone. Ela não previra o que de fato lhe aconteceu: sentiu-se muito mal, angustiada, deprimida, assustada com a dimensão de seu ciúme. Nunca antes lhe havia passado pela cabeça que poderia sentir ciúmes incontroláveis. O romance de Sartre com Simone Jolivet abalou sua auto-estima. Ela não conseguia sequer escrever. Sartre veio em seu auxílio, trazendo-lhe o carinho do amor "essencial".
Pouco a pouco, ela se recuperou. E, alguns anos mais tarde, chegou a declarar: "No interesse do meu pacto com Sartre, eu tinha a mesma liberdade que ele. E a usei"(3).
De fato a usou. Simone também teve amores contingentes. Mais discreta do que o autor de O ser e o nada, a autora de O segundo sexo freqüentou bem menos assiduamente o campo da contingência. Sabe-se de suas relações amorosas com dois companheiros de direção da revista Temps Modernes: Jacques-Laurent Bost e Claude Lanzmann (dezessete anos mais jovem do que ela). E é conhecida a paixão que surgiu em sua relação com o escritor norte-americano Nelson Algren. Claude Francis e Fernande Gontier, em sua biografia de Simone de Beauvoir, lançaram luz sobre esse episódio.
No início de 1947, Simone visitou os Estados Unidos. Como queria conhecer o submundo das grandes cidades norte-americanas, apresentaram-na a Nelson Algren, cujos livros eram escritos a partir de aventuras vividas no meio da marginalidade. Simone gostou muito dos livros e de seu autor, que tinha 1,85 metro de altura, era louro e bastante viril.
A relação de Simone com Nelson Algren tornou-se mais forte do que qualquer das relações de Sartre com seus amores contingentes. A escritora francesa e o escritor norte-americano apaixonaram-se; ela foi visitá-lo algumas vezes nos Estados Unidos e ele foi visitá-la na Europa. Passearam juntos, mantiveram intensa correspondência (Simone lhe escreveu cerca de 1800 páginas). Nelson Algren a chama de sua verdadeira esposa e ela responde: "É o que eu sou, de fato"(4).
Houve conflitos inevitáveis: Algren não entendia o pacto com Sartre e não aceitava a classificação dos amores como "essenciais" e "contingentes". Quem vive de amores contingentes - argumentava - tem uma vida contingente. Simone sentia-se abalada: "O amor me dá medo, me torna burra"(5). Um dia, depois de uma discussão, Simone lhe disse: "Se a nossa relação amorosa se rompesse, eu gostaria de ficar ao menos com a sua amizade"(6). E ele retrucou: "Jamais eu poderia lhe dar menos do que o meu amor"(7).
Desesperado, ele insiste na proposta de casamento que ela, no entanto, recusa. Aos trancos e barrancos, a relação ainda durou até o início dos anos 1950. Ele não conseguiria viver em Paris e ela não conseguiria viver fora de Paris. Esse era o problema prático insolúvel que estava por trás das frustrações subjetivas.
Nelson Algren nunca perdoou Simone. Em 1981, ao conceder uma entrevista, irritou-se violentamente quando o repórter lhe perguntou de Simone. Entre insultos, deixou transparecer o quanto a ausência dela o molestava. E no dia seguinte morreu, fulminado por um infarto.
Simone de Beauvoir desenvolveu intensa atividade literária em Paris. Embora nunca tenha se filiado a nenhum partido político, participou de numerosas batalhas memoráveis ao lado de Sartre. Chegou a presidir o Tribunal Russell, que condenou a invasão do Vietnã pelas tropas norte-americanas.
Em 1952 publicou o ensaio "É preciso queimar Sade?". Em 1954 lançou o romance Os mandarins, no qual, com nomes modificados, podiam ser reconhecidos diversos personagens reais (entre os quais, Nelson Algren). Ainda escreveu quatro volumes de memórias: Memórias de uma moça bem-comportada (1958), A força da idade (1960), A força das coisas (1963) e Balanço final (1972). Publicou também um ensaio intitulado A velhice (1970), muito bem escrito e o qual Otto Lara Resende disse sempre reler.
Sem a pretensão de arrolar toda a produção literária de Simone de Beauvoir, não posso deixar de dizer algo sobre A cerimonia do adeus( 8 ) (1981). É um livro perturbador, com as recordações pessoais de Simone a respeito dos últimos dez anos da vida de Sartre. Para escrevê-lo, ela valeu-se de um diário em que anotava tudo que acontecia e podia ser significativo.
A imagem de Sartre no livro é melancólica; em vários momentos chega a ser deprimente. Vemos um Sartre doente, cheio de dores, que sofre de incontinência urinária, quase inteiramente cego e reduzido à humildade da resignação. Simone pergunta como ele, tão pudico, vive a situação de falta de controle fisiológico. Ele responde: "É preciso ser modesto quando se é velho"(9).
A publicação de A cerimônia do adeus causou impacto. Muitos reprovaram Simone por sua descrição cruel da decadência de Sartre. Sua atitude é interpretada como uma vingança - talvez inconsciente - contra os sofrimentos que lhe foram infligidos no âmbito de sua relação com seu "amor essencial".
Outros, porém, viram na atitude da escritora uma última e coerente homenagem. Pelo pacto que fizeram em 1929, ambos não haviam assumido o compromisso de não dissimular nada, de dizer sempre tudo, com toda a franqueza? Cito novamente Otto Lara Resende, que observou, num artigo para o jornal O Globo: "Se a Beauvoir tivesse morrido primeiro, Sartre não a pouparia". E: "[...] três anos mais velho, Sartre cometeu a cortesia de morrer primeiro". Coube a ela falar sobre ele, no tom em que ambos se diziam as coisas.
Se cotejarmos o que diziam com o que faziam, as palavras com as ações, verificaremos que eles foram fiéis ao pacto. Mais do que isso: foram assustadoramente fiéis a si mesmos.
Para desgraça de Nelson Algren.
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1. Claude Francis e Fernande Gontier, Simone de Beauvoir (Paris, Perrin, 1985).
2. Ibidem.
3. Ibidem.
4. Ibidem.
5. Ibidem.
6. Ibidem.
7. Ibidem.
8. Simone de Beauvoir, A cerimonia do adeus (trad. Rita Braga, 3 ed., Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1983).
9. Ibidem.