“Muito bem, Crispinzinho, mandaste muito bem, é isso aí, força , cara!”
“Parabéns pela coragem, amigo, continue lutando!”
“Mentaliza e foca positivo, camarada, e você sabe que pode contar conosco!”
“Quanto foi o jogo do Corinthians ontém ,mesmo? Estava tão bêbado que peguei no sono... Nem sei como eu cheguei em casa, negada!!!!”
A última frase foi pronunciada mentalmente, até porque estava com a mente absorta, pensando em sei lá o quê enquanto o Crispinzinho fazia o seu depoimento, com o coração saindo pela boca. Crispinzinho era o mais novo membro da nossa reunião da A.P.A , da qual eu, Abelardo Colombo Mendonça, vulgo Mendoncinha, sou o membro mais antigo. Ao contrário da maior parte de meus companheiros de terapia, ainda não consegui resultados significativos com o tratamento. Isso não me impede de ser o seu maior entusiasta. Parece contraditório, eu sei. Talvez o que me faça resistir à cura seja o fato de gostar muita da doença. E o gosto do convívio semanal com os meus iguais. A psiquiatra que dirige as reuniões ainda me encoraja, afirmando que acredita firmemente que é mera questão de tempo para que a minha consciência e meu corpo absorvam a carga terapêutica a que venho sendo submetido já há... sei lá quantos meses... Mas já demonstra um pouco de impaciência com o meu progresso inexistente , e isso pode ser visualizado mais abaixo, se vocês conseguirem ler até o final.
Não sei qual o filósofo francês que vendia enciclopédias que disse , certa vez, provavelmente em um bordel parisiense : “Quem foi para Portugal, perdeu o lugar.” Não, não, isso era eu quem dizia, no primário, pinçando uma máxima da sabedoria infantil , quando me apoderava da carteira do meu amiguinho Dimas , apenas para sacaneá-lo, ao chegar mais cedo do que ele , respondendo ao seu pedido de reintegração da posse carteiral. Geralmente a réplica era: “Vou contar pra tia!!!!!!!” A frase do filósofo, se muito não me engano, era: Há mais putas entre entre o bordel e a sua terra do que supõe nossa vã filosofia”. Difícil imaginar uma outra frase que possa ser superada em profundidade e alcance.
De qualquer maneira, falava da última reunião da A. P. A. Era a minha palavra, após o depoimento do Crispinzinho. As participações seguiam o sentido horário, e eu me sentava ao lado do rapaz. Durante alguns segundos , todos ficaram em silêncio e olharam para a minha direção. Percebi , então, que era a minha deixa. Levantei-me rapidamente, para evitar cambalear ou coisa parecida, pois desconfiava que o efeito etílico da noitada anterior ainda corria em minha corrente sangüínea. De pé, sem ter a menor idéia do que deveria dizer, olhei para a doutora, sorrindo cordialmente, depois para todos os outros companheiros, com mesmo olhar afável, até chegar ao Crispinzinho, que ainda apresentava uma certa melancolia e dei umas batidinhas de leve em seu ombro.
- Mendoncinha, estamos esperando,a palavra está contigo...
- Meus caros senhores.... senhora – disse isso fazendo uma vênia a psiquiatra, que já me olhava com um certo ... ódio, por assim dizer - Todos sabemos o porquê estamos aqui. Sem exceção, todos sabemos. Somos todos uns desclassificados morais, essa é que a verdade, penso eu. Ao ouvir o nosso jovem aqui, Crispin, menino ainda, lembrei-me da aurora da minha juventude. Gloriosos dias de solteirice, depravamento e nobre desleixo no andar e no vestir. Sem responsabilidade alguma com nada ,sem que ninguém dependesse de mim para tocar os negócios da família! Dias de farra, de pândega diária, carteira sempre recheada, bancada por meu querido e saudoso pai, Mendonção, que Deus lhe tenha em bom lugar... Até que, com o desaparecimento do meu protetor, entendi melhor a emoção de Maísa , ao interpretar a canção “ Meu Mundo Caiu”. Tive que assumir os negócios da família, senti-me pressionado pela família de minha noiva para que o enlace de nossas almas gêmeas finalmente se concretizasse e acabei fraquejando... Não bastasse a perda do meu pai, perdi também a principal característica que movia a minha então imberbe existência: a liberdade ! Minha vida passou a ser análises de balancetes, reuniões com representantes , compromissos sociais em que eu e minha mulher éramos constantemente convidados, sempre inadiáveis e cacetes e dos quais não podíamos fugir... E aqui estou hoje, no alto dos meus 57 anos, com um peso descomunal nos meus ombros, mas ainda me sentindo, no fundo, como o jovem puteador, o Mendoncinha da turma da faculdade, das viagens com a rapaziada, da azaração nos botequins, das gurias que catei, das que fugi, e até das que me esnobaram... Sinto muita sudade de todos eles, dia após dia, dos meus comparsas canalhas, sem a menor integridade , sem o menor caráter quando o assunto era mulher. Hoje a maior parte deles ou morreu ou sucumbiu , como eu...
Silêncio entre a negada. Crispinzinho me olhava hipnotizado, como se adivinhasse o seu futuro através de minhas palavras. Era impossível não ficar com pena daquele jovem putanheiro... A psiquiatra me olhava com enfado, por já ter ouvido essa lamentação muitas vezes. Me dirigia apenas ao Crispinzinho, no entanto. Era ele quem merecia ser salvo!
- Acho que foi isso o que me moveu, desde que me casei e virei um escravo dos meus dependentes, para esta ... doença. Sinceramente, sinto um imenso pesar com a idéia de me curar desse... mal... Não me sobrou muita coisa. Eu vou ao médico de seis em seis meses, faço o check up, controlo o peso, controlo a pressão arterial, controlo o colesterol... Não consigo mais jogar futebol, porque arrebentei o meu joelho fazendo uma escalada imbecil para impressionar os meus sócios, para que vissem como eu sou um coroa moderno, descolado e aventureiro...Minha vida se resume a isso: trabalhar como um mouro e , nessas alturas do campeonato, tendo que abdicar de meus vícios preferidos , como o futebolzinho de fim de semana, o álcool, o churrasco e o sorvete . A senhora diz que isso deve ser feito, doutora, meu cardiologista faz o mesmo. Tudo bem. Eu me dobro a isso, de novo. Já fiz isso antes, sou bom nisso. Restrinjo a comilança, deixo para beber a minha cerveja só na sexta e no sábado, e vivo como um vegetal durante semana, contando os minutos para a minha alforria momentânea.
Vocês deveriam ver o modo como o Crispinzinho ouvia o que eu falava! Acho que deixei o rapaz em transe...
- Doutora, muito sinceramente, tenho muitas dúvidas de como seria a minha vida livre desse vício... Não tenho mais idade nem paciência para jogar tênis, sempre detestei jogar xadrez e nunca tive nenhum talento artístico para pintar quadros ou coisa parecida. A minha terapia é a... enfim! Não quero desencorajar meu nobre e jovem colega aqui do meu lado, nem aos demais que, como eu estão nessa batalha há mais tempo, mais calejados... Mas é o que me sobrou , doutora. Penso nisso dia e noite, talvez mais do que em outros momentos da minha vida. De qualquer maneira, devo dizer que estou limpo já há... impressionantes... ( dei uma olhada no relógio ) duzentos e sessenta e seis... minutos... Antes de vir aqui, visitei uma ... pessoa... e ela me ... deu o cúzinho mediante a quantia de 120 reais.
Silêncio. O tempo parecia ter sido paralizado. O silêncio era tão brutal que parecia impenetrável. E eterno.
Sentei-me. A psiquiatra me olhava com um misto indefinível de ódio e piedade. Todos estavam quietos, pensando em suas próprias dificuldades, seus próprios dramas para lutar contra a dependência putológica. Alguns olhavam para o vazio, outros balançavam os pés, alguns batucavam o apoio da cadeira.
O único que rompeu o silêncio foi o Crispinzinho, perguntando alto e sem esconder o assombro:
- Só cento e vinte reais pelo cuzinho da Gislaine Kirchnaider?