Mendocinha estava entre aqueles que se deliciavam com a política - ou com a falta de uma discussão política – e com o prazer de achincalhar os sofredores adeptos do Faz Me Rir. Na sociedade, havia o sentimento, para alguns, de que os comunistas foram derrotados e seus planos de transformar o Brasil em uma nação socialista foram devidamente enterrados pelos vigilantes que ora governavam os destinos do gigante, deitado eternamente em berço esplêndido.
O Mendoncinha era uma figura que se encaixava perfeitamente nesse perfil.
Caminhava despreocupadamente o nosso já robusto e calvo herói, rumo ao centro, com destino è estação de trem, quando a encontrou recostada a um paredão, no bairro do Brás, nas imediações estação de trem, a alguns metros da praça Agente Cícero. Pelo extenso paredão havia uma grande variedade de vagabundas, vestidas de forma similar e utilizando os mesmos meios para despertar a atenção – e quem sabe, algo mais – dos transeuntes mais próximos. Mendocinha a distinguiu das outras muito rapidamente e, pela primeira vez em sua vida (contava , então, com, 37 anos) abordou seriamente uma puta. Até aquele momento, na verdade, era um dos detratores das vadias do paredão e achava que aquele espetáculo diário era uma das maiores vergonhas daquele bairro.
E porquê, repentinamente, um homem quase de meia idade, recém casado e com uma filhinha a caminho, direitoso, reacionário e religioso, muda a sua forma de agir e pensar em relação a algo deste gênero e transgride uma convicção interna que beirava a intolerância irracional contra toda uma classe profissional ? O que fez esse homem sentir tal necessidade de atravessar a rua, se dirigir às putas do paredão, romper a sua relutância interna brutal de caminhar entre “psius” e provocações das quengas concorrentes, até chegar ao lugar onde a sua puta alvo estava?
Difícil de explicar, com precisão. A aparência física daquela mulher certamente a distinguia das demais. Tinha cabelos lisos e longos, negros, brilhantes como a asa da graúna. Olhos amendoados, dissimulados. O nariz era delicado, os lábios perfeitos, instigantes. O sorriso, então, um capítulo à parte: deslumbrante.
O corpo, era algo digno de nota. Revestido por roupas vulgares e de mau gosto, era uma espécie de Play Center do caralho humano. Não era muito alta, mas era magra e esguia, sem deixar de ostentar uma certa saúde na buzanfa e na peitaria. Era um oásis no deserto, em suma, e sua presença foi detectada por ele imediatamente, há muitos e muitos metros de distância. Não há intolerância ou convicção que caia por terra diante dos caprichos da nossa pica.
O diálogo que se seguiu entre eles é algo que todos nós já conhecemos de cor e salteado, com exceção deste pequeno trecho:
- E quanto irá me custar essa brincadeira? – perguntou, salivando, Abelardo, já completamente conquistado pela quenga após um brevíssimo colóquio em que combinaram como seria o atendimento.
- Vai te custar caro, gato. Mas não vou te cobrar menos do que devo ou mais do que podes pagar.
- Eu quero saber quanto vai custar, em números, minha filhinha...
- Em moeda? Absolutamente nada...
- Como assim ...? – perguntou surpreso.
- Hoje você não vai me pagar nada. Digamos que eu queira te dar uma amostra grátis das minhas habilidades.
Bem, se era fazer a propaganda da própria buceta o que intentava Dalila , podemos dizer que a sua empreitada foi um sucesso retumbante. Porém, não ficou muito claro para Mendoncinha a natureza da estratégia de Dalila, já que, após esse primeiro encontro, a ratazana desapareceu das imediações definitivamente.
Isso mesmo. Já devidamente conquistado pela meretriz, Mendoncinha se viu, logo depois, abandonado pela mesma. Uma das grandes fontes de cismas dele era especular , de si para si, o que teria acontecido com aquela vadia.
Teria sido assassinada pelo seu cafetão? Voltou para sua cidade natal, com saudades da família e arrependida pela forma pecaminosa e imoral com a qual obtinha sustento? Ou seria casada, e foi surpreendida pelo marido, que a esfaqueou assim que teve a chance? Seria Dalila uma estudante de antropologia, pesquisando o comportamento do homem que procura bucetas de aluguel? Ou uma policial, empenhada em encontrar um perigoso e sanguinário assassino serial, cuja aparência e medida seriam, por coincidência, parecidas com as suas ? E que, ao verificar que não era ele o Jack Estripador da Móoca, partiu para outros pontos da cidade em busca do foragido assassino de putas?
Mendocinha não desistiu facilmente de encontrá-la. Após o seu desaparecimento, promoveu um inquérito pessoal para desvendar o mistério que encobria esse acontecimento tão desagradável para a sua pica. Dia após dia, sempre que passava pelo paredão, abordava uma quenga diferente e perguntava se a mesma não conhecia uma tal de Dalila, piranha encantadora, morena de olhos cor de jaboticaba, pele de pêssego, lábios de mel e buceta acolhedora e cheirosa como nunca antes na história desse país já existiu.
As respostas eram muito parecidas, infelizmente. Dalila não era conhecida por nenhuma delas. Muitas, inclusive, diziam que nunca houve uma Dalila fazendo ponto por ali e chegavam ao ponto de questionar a sanidade mental do doublé de detetive de piranhas que insistia em interrogá-las.
Nunca houve uma Dalila, ora pois!!!!!
Claro estava pra o nosso agente secreto que algo inusitado e incompreensível se encontrava em curso . Uma mulher como aquela não poderia passar desapercebida em parte alguma, muito menos em um ambiente em que a sua deliciosa e encantadora figura se destacava tão facilmente.
Dalila, no entanto, logo se transformou em uma doce e contagiante memória, que servia como uma espécie de viagra psicológico quando apanhado de surpresa pela sua patroa para cumprir suas obrigações conjugais. Não fora uma ou duas vezes que se utilizou deste ardil para aquietar sua cônjuge, que , estranhamente, procurava por ele sempre que chegava um pouco mais tarde em casa, após uma happy hour com seus colegas de repartição.
No entanto, suas buscas foram infrutíferas e sua empreitada não prosperou.
Anos e anos se passaram.
Os militares entregaram a paçoca, Arena e MDB deram lugar ou transformaram-se em siglas como PMDB e PDS e o processo de redemocratização, das Diretas Já, chegaram ao seu gran finale, com a eleição indireta de Tancredo Neves para presidente. Na cena política, nomes novos despontavam, como o já careca José Serra, o professor de sociologia poliglota e intelectual Fernando Henrique e , no ABC, víamos o surgimento de um barbudo sindicalista chamado por todos de Lula, que , já naquela época, provocava para si tanto a admiração como a repulsa pela sua figura .
Mendocinha não exultava com o fim do regime militar e parecia muito pessimista com o que estava por vir. Mesmo assim, é preciso que se diga que estava bem de vida, com a sua filhinha bem crescida, encantadora e alegre. Sua esposa engordara um pouco, e continuava sempre muito atenta às escapulidas do seu marido, embora não obtendo sucesso em suas seguidas tentativas de surpreendê-lo, com a boca na butija ou caindo em algum tipo de contradição em suas explicações para justificar seus horários muitas vezes incompreensíveis.
1998.
Mendoncinha caminhava indolentemente pelo centro, sem grandes cismas, com destino ao seu escritório, quando vê uma figura próxima a uma floricultura, na praça Joel Mendes, em frente ao Fórum.
Era ela?
Era.
Conversava com um senhor de terno, que parecia um pouco desconfortável com o diálogo, procurando desvincilhar-se da insistente micheteira que tentava vender-lhe seus serviços. Por algum motivo que escapava a sua compreensão, o senhor grisalho e circunspecto vai embora sem fechar o “negócio” e deixa o campo livre para uma abordagem à meretriz. Por acaso aquele parvo era cego? Ou era viado? A prostituta se limitava a observar o empertigado executivo com um sorriso enigmático, enquanto este se afastava , decidido.
- Dalila?
- Hein?
- É você mesmo...- constatou Mendoncinha, exultante.
- Sou eu? – perguntou piscando o olho a doce piranha, sem parecer entender muito bem o que se passava.
Estava igual. Parecia que a tinha visto no dia anterior. Estava tudo, à primeira vista, no mesmo lugar. Mais que isso: Mendocinha poderia jurar que estava ainda mais bonita.
- Você... hã... trabalhava no Brás, não trabalhava? Ali, na Almeida Lima, perto da estação de trem. Já faz um tempinho – Mendoncinha procurava fazer com que Dalila se lembrasse dele. Sem sucesso.
- Desculpa gato. Acho que você está enganado. Cheguei semana passada do Mato Grosso , nunca estive no Brás e sou a Katienne.
- É mesmo? Mas como pode, você é tão parecida com a outra moça...
Katianne parecia um pouco aborrecida com aquele diálogo e tratou de adiantar as condições e o preço do embate. Mendoncinha, ainda atarantado pela semelhança absurda de Katienne com Dalilla, aceitou as condições sem pestanejar.
Suas impressões iniciais se comprovaram com o decorrer do fight. Eram sósias, não só no rosto e no corpo, como na safadeza. Ficou a tarde inteira metendo com a rapariga , e o cachê inicial foi consideravelmente reajustado, por iniciativa do próprio Mendocinha, que objetivava com isso cativar a vadia e impedir que a mesma seguisse o mesmo e desafortunado caminho da primeira.
Infelizmente, era hora de voltar pra casa. Mendoncinha e a puta vestiram-se, ela muito mais rápido do que ele, e se despediram. Antes de tirar a carteira, para pegar o dinheiro e pagar a vadia, ela pede para que ele anote o número de seu celular.
- Dessa forma, não nos perderemos mais de vista, gaaaato...
- Claro, claro... Veja, eu já ia me esquecendo!
Ela vai andando em direção a porta enquanto escrevia seu número em um pedaço de papel. Ao lhe entregar o número, sorrindo, pede para que vá descendo enquanto ela acaba de se arrumar.
Enquanto descia as escadas, ela se aproximou correndo do patamar e fez questão de pedir para que guardasse aquele número com carinho e nunca o jogasse fora.
- Pode deixar, minha filhinha... O que você me pede sorrindo, que eu não faço chorando? Vou guardá-lo na minha carteira, bem aqui, veja - e colocou o papel dobrado num bolso interna da carteira.
Ficou esperando no saguão por 10, 15, 20 minutos e nada... Tentou perguntar para o atendente do hotel o que acontecia com a hóspede que não descia e a resposta era sempre a mesma: “ Um momento, senhor, que eu já verifico...” E nada...
Abelardo tentou ligar para o celular de katiene enquanto esperava, mas a ligação não completava nunca e sempre ouvia a mesma mensagem dizendo que o número estava errado. Já estava quase desistindo quando percebeu que estava trocando um número por outro. É claro que culpou a má caligrafia da moça e não sua vista cansada...
- Alô? Dal... digo katiene, onde você está? Preciso ir andando, minha filhinha, sabe como é, né?
- Desculpe, gato. Aconteceu um imprevisto e eu tive que ir embora.
- Mas, menina, eu preciso te pagar, não é mesmo? Como é que a gente faz?
- No nosso próximo encontro, você me paga o que deve. Até qualquer dia gaaaaato...
Mendoncinha deu de ombros e foi embora, seguro de que , em no máximo um ou dois dias, a dívida seria paga.
Mas a vida sempre nos prega peças!
O que é bom termina rápido, deixa um gosto agradável na boca e recordações que o tempo não pode apagar...
Katienne some no mundo , a exemplo da outra.
Ah, Praça Joel Mendes velha de guerra... somente você é testemunha do abnegado esforço diário que este senhor fez, durante dez anos, para encontrar de novo com a quenga de seus sonhos. Suas bancas de flores foram privilegiadas espectadoras do comprometimento fiel deste senhor em reencontrar a felicidade em forma de buceta. Quantas e quantas vezes descontou na patroa toda a frustração por não conseguir um novo round, pela terceiravez na sua vida, com a aquela que seria para ele a puta perfeita! Mesmo com os anos se passando e ele já dobrando a casa dos setenta anos, a libidinosa recordação de sua prima amada e uma certa pílula azul eram seus grandes aliados para cumprir as suas obrigações conjugais , até o último momento de seu casamento.
Amélia faleceu em 2010.
Mendoncinha contava então com 75 anos. Apesar da enorme falta que fazia sua mulher, a vida continuava. Sua filha e seus dois netinhos sempre o visitavam. Apesar da solidão que sentia, vivendo sozinho naquela casa em que dividiu sua vida com sua mullher por mais de quarenta anos, ele se virava. Todos os dias vinha uma moça, que limpava a casa, deixava tudo brilhando e cheiroso. Fazia a comida seguindo rigidamente as recomendações de Doutor Wilfried.
Que diabos!!! Tinha mais de setenta anos, mas estava inteiro. Todos os seus bons amigos já não estavam mais entre os mortais: Ranulfo, Dimas e o Aquiles, entre outros. Ele era o último dos moicanos. O decano de uma turma de amigos putanheiros, bêbados e canalhas...
Naquele dia, resolveu fazer algo que tinha deixado pra trás por muitos e muitos anos. Lembrara de seus amigos, seus bons amigos, e decidiu comer uma puta para celebrar o fato de ainda estar vivo e , graças ao advento do viagra, comer qualquer lebre que lhe passasse pelas mãos.
Tirou a carteira do bolso, onde guardava os telefones das putas que eventualmente comia. Não eram todas que atendiam bem aos coroas como ele. Sempre precavido, guardava os números todos em um bolso feito originalmente para guardas moedas.
Pacientemente, desdobrou os telefones, e percebeu , com certo pesar, que estavam muito amarelados e amassados... Há quanto tempo não ligava pra essas micheteiras? Será que essas putas ainda estavam vivas, perguntou-se, sorrindo amargamente.
“Deixe –me ver isso aqui... Mirela Massagista... há vinte anos atrás já era bunduda demais , imagina o tamanho do traseiro dela hoje em dia! Solange Coroa... nem pensar. Até a neta dela já devia estar passada... humm... Michele Gordinha... melhor não, preciso controlar o colesterol... Aqui, esse número... peraí... o que essa porra ainda está fazendo aqui?”
- Não acredito que guardei o número desta perva tratante... me largou na covardia por bons dois anos!!! Essa vadia me deixou na punheta e com a dieta a base da Amélia...
“ Que Deus a tenha... Santa mulher! Só ela mesmo para suportar um sacolão como eu por tantos anos...”
- Em nome dos momentos de devassidão que passei naquele quartinho fedorento da Praça Joel Mendes, vou ligar . Se atenter um cueca, mando tomar no cu e pronto.
Enquanto fazia a ligação, ponderou que era melhor não fazer isso, poderia ser alguém perigoso, e hoje em dia todos tinham identificador de chamadas... Vai que essa porra dessa linha cai bem na mão de um chefe do PCC, num daqueles presídios de segurança mínima onde comandam o crime organizado desse país!
-Alô?
“Que porra é essa ?” , pensou Mendoncinha...
- hã... quem fala?
- Quer falar com quem, Abelardo?
- Desculpe... mas...
- Como eu sei o seu nome?
- I- is-sso…
- Oras… que tipo de profissional eu seria se não soubesse identificar meus melhores clientes pelo tom de suas vozes?
- Katiene...! Como é que pode uma coisa dessas !!!!
- Não. Já me esqueceu, gato? Sou a Dalila... e estou morrendo de saudade de você!
- Isso é alguma piada,vai – murmura o cansado putanheiro, enquanto se encosta na na mesa.
- Posso ir aí?
- Dalila... Dalila... é você mesmo?
- E então? Vai me convidar pra entrar ou não vai?
- Bem, claro... anote meu endereço. Ahh.. Rua d...
- Eu sei onde é, gato!
- Como assim? Você sabe?
- Claro que eu sei, gato!!! Que tipo de profissional eu seria se não soubesse? Hoje é o dia de você acertar aquela programa, lembra?
- Como é que eu poderia esquecer, meu deus do céu... Você ainda está com tudo em cima, minha filhinha? Continua com aqueles peitos maravihosos? Aquela bunda, meu Deus, que bunda era aquela... – enquanto se lembrava com ricos detalhes do corpo de Dalila, Mendocinha percebeu que estava com seu membro ereto como há muito tempo não ficava. Mais precisamente, desde uma longínqua segunda feira de garoa fina do ano da graça de mil, novecentos e setenta e três...
- E então gato? Vai me convidar ou não?
- Onde você está? Está de carro? Quer que eu mande um táxi te buscar?
- Não. Basta abrir a porta.
- Abrir ... a porta ...?
- Sim. Eu estou aqui já há algum tempo.
- Um segundinho que eu já abro esta porta minha fihinha... - e foi, com uma agilidade de menino, correndo apressado para a porta ... Quanta emoção que sentia, o Abelardo!!! Eram tantas coisas que passavam em sua cabeça, como a vontade de matar a saudade daquela bunda, daqueles peitos, daquela boca... e a boca da Dalila, puta que o pariu!!!!!!!. Parecia que ia sufocar!
Abre a porta, com o coração saindo pela boca.
Não havia ninguém lá.
O hall estava vazio. Fechou a porta com a cabeça em parafusos, e , quando deu por si, lá estava a Dalila, sorrindo pra ele, no meio da sala.
Era ela...
Com a mesma roupa barata e o mesmo olhar de jaboticaba , o mesmo olhar dissimulado. Linda. Linda demais...
Mendoncinha sufucava cada vez mais ... e caminhava lentamente em direção a ela, que o esperava , de braços abertos...
- Venha, Abelardo... O seu momento chegou!
Abelardo tentava caminhar , mas não conseguia. A emoção o dominava, o peito sufocava, arquejava e uma dor quase infinita lhe atravessava o peito. Se arrastava pelo chão agora, em um esforço desesperado para alcança-la.
- Venha, Abelardo. Você é meu agora.