O avanço da pandemia pressiona hospitais e o sistema de saúde
Enquanto a vacina de gripe suína não chega, o número de doentes aumenta e ameaça ultrapassar a capacidade do sistema de saúde brasileiro. O que fazer?
"Nas últimas semanas, comecei a ver no hospital uns casos muitos esquisitos, casos estranhos como nunca vi na vida", diz o infectologista Paulo Olzon, de 62 anos. A observação não é corriqueira. Olzon é professor da Escola Paulista de Medicina e infectologista desde 1971. Ele teve a oportunidade de cuidar de doentes com praticamente todos os sintomas que as doenças infecciosas podem manifestar – ou quase todos. Em quatro décadas de profissão, Olzon nunca tinha visto casos de pneumonia com evolução tão rápida e severa como naqueles quatro pacientes, três homens e uma mulher com idades entre 25 e 45 anos, internados na segunda semana de agosto na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital São Paulo, em São Paulo. Os quatro corriam risco de vida. Só sobreviveram graças ao fato de terem sido internados em tempo hábil em uma UTI com os melhores recursos da medicina. "Um dos pacientes tinha voltado à noite do trabalho para a casa se queixando de dores no corpo e foi dormir", diz Olzon. "Às duas da manhã, ele não parava de tossir nem conseguia mais ficar em pé. Sua família teve que carregá-lo de madrugada para o hospital, onde foi internado. Às duas da tarde, o funcionamento dos pulmões ficou comprometido. Tivemos que entubá-lo, para usar o respirador mecânico. Ao mesmo tempo, tivemos que drenar 800 mililitros de líquido só do pulmão esquerdo."
Aquele doente tinha pneumonia viral, bem mais perigosa que a pneumonia bacteriana. A pneumonia bacteriana é a forma mais comum de pneumonia, sendo responsável pela imensa maioria dos casos (o que inclui os outros três doentes tratados por Olzon). A pneumonia bacteriana, como seu nome indica, é causada por diversos tipos de bactérias que atacam os brônquios e os pulmões. Ela é a responsável pela maioria dos casos graves de gripe suína, quando o vírus A(H1N1) invade o sistema respiratório e começa a se reproduzir nas células do pulmão, matando-as. As células mortas formam um caldo de cultura para as bactérias causadoras da pneumonia bacteriana. Muitos pacientes desenvolvem formas brandas de pneumonia bacteriana, que exigem internamento hospitalar em leitos comuns para tratamento com antibióticos, repouso e observação. Uma minoria dos doentes pode desenvolver formas mais severas que exigem internação em UTI, onde permanecem por vários dias ou semanas. Nem sempre todos se salvam.
Com a pneumonia viral é diferente. O estrago causado pelo vírus A(H1N1) é fulminante e devastador. Não sobra tempo para as bactérias oportunistas tomarem o seu lugar. Sem a possibilidade de internação imediata em UTI, a pneumonia viral é mortal em 100% dos casos. Foi assim na Gripe Espanhola de 1918. É assim ainda hoje, 91 anos depois. Mas a internação em tempo hábil em uma UTI de pacientes com pneumonia viral não fornece de forma alguma um passaporte para a sobrevivência. Segundo o historiador americano John Barry, autor de A Grande Gripe – A história da pandemia mais mortal da história (The Great Influenza, 2004), o melhor arsenal médico do início do século XXI só consegue salvar 6 em cada 10 doentes. Aquele paciente com pneumonia viral tratado por Paulo Olzon teve sorte de conseguir um leito de UTI.
O mês de julho chegou ao fim com um saldo de 85 mortos pela gripe suína desde o surgimento dos primeiros casos, em maio. Bastaram duas semanas de agosto para o total de mortos quadruplicar. Na sexta-feira (14), o balanço das secretarias estaduais da Saúde indicava 339 mortes, o que colocou o Brasil no segundo lugar em número de vítimas, à frente do México (163) e da Argentina (337) e atrás dos Estados Unidos (477). O aumento no número de mortes não significa que o vírus A(H1N1) da gripe suína está se tornando mais perigoso, apenas que ele é muito contagioso e está se espalhando rapidamente pelo país. Assim, mesmo com uma letalidade muito baixa, o vírus afeta centenas de milhares de brasileiros. Em sua imensa maioria, elas não desenvolvem sintomas ou têm sintomas de uma gripe comum. Uma minoria pode desenvolver complicações (como pneumonias não-graves) e necessitar de internação hospitalar. A menor parte dos casos pode evoluir para pneumonias graves, que acabam na UTI. "Por causa da pandemia de gripe, os leitos hospitalares estão sob enorme pressão. O maior problema é na UTI", diz Juvêncio Furtado, o presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia, e infectologista do Hospital Heliópolis, em São Paulo.
Jorge Curi, o presidente da Associação Paulista de Medicina, diz que os grandes hospitais de clínicas do estado de São Paulo, como o Hospital de Clínicas da Unicamp, em Campinas, já estão sendo obrigados a suspender ou adiar as cirurgias eletivas, aquelas que não são de urgência, para liberar leitos comuns aos pacientes de gripe. No Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, a gripe suína foi responsável, em julho, por um aumento de 20% nos atendimentos no pronto-socorro com relação ao mesmo mês de 2008. "O aumento anual médio nos atendimentos hospitalares é de 5%. Um aumento de 20% de um ano para o outro é um percentual enorme, compatível com uma pandemia", diz Luis Fernando Aranha, o superintendente do Einstein.
As estatísticas mais recentes apontam para o Paraná como o estados brasileiro onde o total de doentes cresce mais rápido. O número de internações causadas pela gripe suína no estado triplicou em 10 dias. Passou de 255 internações até o dia 1º de agosto, para 1.007 no dia 12, diz o secretário estadual da Saúde, Gilberto Martin. A utilização dos leitos de UTI dobrou de 84 para 169. Apesar de o Paraná possuir 24 mil leitos comuns e 1.364 leitos de UTI, o aumento de ocupação provocado pela gripe suína obrigou o sistema de saúde a suspender todas as cirurgias eletivas, não-emergenciais. “Este salto é preocupante, mas não é alarmante,” diz Martin. “Se a curva ascendente continuar será preciso reavaliar nossos procedimentos pra não haver sobrecarga no sistema de saúde.”
A situação na cidade de São Paulo não é muito diferente. “O último fim de semana foi uma loucura, mas o nível de atendimentos nesta semana diminuiu de 250 para 180 por dia”, diz David Uip, diretor do Instituto Emílio Ribas, de São Paulo. Uip diz que, com o fim do inverno e a elevação das temperaturas, a gripe suína não vai desaparecer, mas o número de casos deve estabilizar. “A pandemia tanto pode aumentar quanto pode diminuir”, diz Uip. “Mas sabemos que com o calor o número de internações vai ficar estabilizado dentro da capacidade de atendimento”.
Alguns administradores hospitalares estão se preparando para outro cenário. Cerca de 80 pacientes com gripe suína passaram pelos leitos do Hospital Santa Catarina, em São Paulo. No momento, há 27 pacientes internados, em um total de 320 leitos. “Os casos de gripe suína correspondem a 10% da ocupação”, diz Luciano Patah, o diretor técnico do Santa Catarina. Patah diz que a pandemia ainda não atingiu o seu pico na cidade de São Paulo. Ele afirma que o pico deve ocorrer nos próximos 15 dias, quando a volta às aulas poderá fazer o número de pacientes com gripe dobrar. “Estamos nos preparando para reservar até 20% dos leitos para os casos de gripe. Acredito que a utilização irá se manter no patamar de 20% até o final do semestre letivo, em dezembro. Com o início das férias de verão, a demanda deve cair.”
Se realmente o total de doentes dobrar nas próximas semanas, como diz Patah, muitos hospitais, especialmente os da rede pública, terão que ganhar agilidade e criar soluções para criar leitos e absorver os novos pacientes, independente da gravidade. Um exemplo é Osasco, na Grande São Paulo. Seu sistema de saúde está operando no limite na capacidade de atendimento. Segundo Gelso Aparecido de Lima, o secretário municipal da Saúde, Osasco tem 188 leitos comuns e 12 leitos de UTI, dos quais 9 estão ocupados. “O número de internações aumentou em quase 15% com relação a 2008. É demais para nossa rede,” diz Lima. “Se a demanda continuar aumentando, vamos atingir o limiar de nossa capacidade, e passaremos a ter superlotação.”
Esse é o grande temor dos especialistas. O que fazer se os números da pandemia não estabilizarem e continuarem aumentando? Esta hipótese não pode ser descartada, dada a imprevisibilidade do vírus influenza. A capacidade potencial do vírus A(H1N1) infectar milhões de pessoas é o pior pesadelo dos epidemiologistas, e a razão para a corrida internacional liderada pela Organização Mundial de Saúde para desenvolver uma vacina. A vacina é a única proteção contra a pandemia. Mas ela só deve começar a estar disponível no fim de novembro, e assim mesmo em quantidades limitadas. Onde colocar os doentes graves se, até lá, todos os leitos de UTI estiverem ocupados?
“Este é o cenário para o qual aparentemente nós estamos caminhando”, diz Juvêncio Furtado. “Eu duvido que a epidemia acabe daqui 15 ou 20 dias. O vírus vai continuar circulando. Daqui um mês, o sistema de saúde pode estar sobrecarregado”. Diante dessa possibilidade, Furtado está criando no Hospital Heliópolis uma nova unidade de terapia intensiva para pacientes com dificuldades respiratórias. “Também montamos um plantão de infectologistas que funcionam 24 horas por dia só para atender casos de gripe, numa ala especial, separada do restante dos atendimentos”.
Mesmo que a iniciativa do Heliópolis seja replicada em toda a rede de saúde do país, ainda assim, dependendo do comportamento do vírus A(H1N1), a ampliação da rede talvez não seja suficiente para atender a demanda. “No Brasil, o sistema de saúde trabalha muito no limite da sua capacidade,” afirma Jorge Curi, da Associação Paulista de Medicina. Na eventualidade de o total de doentes superar a oferta de leitos comuns e, principalmente, de UTI, os médicos podem chegar ao ponto de serem obrigados a escolher quem tratar. “É um drama que eu não desejo para ninguém. Mas nós já estamos tendo que escolher”, afirma Curi. “Nós, médicos, infelizmente estamos sujeitos a situações e escolhas como esta.”
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