.
Em 1982, eu tinha onze e meu pai, hoje falecido, contava com seus 43. Saia para o trabalho às 6h30, e portanto, muitas vezes, não o via pelas manhãs. Vestia-se com terno e gravata, barbeava-se com uma equipamento de “três peças” e esfregava as mãos às faces encharcadas de Monsieur Rochas. Usava um Dodge Magnum 1979 cinza para locomover-se: V8, de 318 polegadas cúbicas. Ria pouco. No punho esquerdo, um Omega Speedmaster. No punho direito, uma pulseira de ouro que algemaria o Fernandinho Beira-Mar até a próxima passagem do Cometa Halley. Trabalhava na “cidade”, como me dizia. Hoje, conhecida como centro. Seu Grundig exalava Charles Aznavour ou Édith Piaf. Em inglês, Elton John. Fumava sempre, e batia suas cinzas nos cinzeiros dos carros (antes que fossem extintos), e se fosse necessário, na saboneteira do box do banheiro. Seus preferidos eram os Gitanes. Era respeitado pela esposa. Sempre concentrado, focado nos negócios: quanto mais ganhasse, melhor. Suas férias eram os finais de semanas de verão em que passava com a família na Praia das Pitangueiras. Nestes momentos, acordava invariavelmente cedo, seduzia o barraqueiro orestes com uma nota bege e vermelha de 10 cruzeiros, adquiria o Estadão (a Folha, nessa época, era jornal de viado), metia-se num “calção de banho” e dava-se ao luxo de um descanso de duas horas na praia. Almoçava no Monduba, e sonecava às tardes. Não me lembro do rosto do Wilson sem óculos Rayban. E nunca o vi de pijamas. Provavelmente era mulherengo, mas tanto quanto alguém hoje dissesse que gosta de amendoins: sem metafísica. Sua dieta baseava-se em Gin Tônica, Pinwinnie, pistaches, e pratos árabes. Aos domingos, barbeava-se no Monte Líbano pelas manhãs e usufruia de uma ducha escocesa e sauna. À noite, me levava ao Camelo da Pamplona. Quando queria agradar minha mãe, levava-a ao Homs, para dançar. Morreu aos 58, permaneceu casado por 30 anos, teve três filhos, quebrou diversas vezes e nunca perdeu a dignidade. Nunca teve plano de saúde, estudou em um grupo escolar, apenas até o científico, e foi ao dentista pela primeira vez aos 22 anos. Nunca soube o que seria uma academia de ginástica. Fez judô, e quando podia e queria nadar, nadava no mar. Falava a língua dos pais, o árabe. Cuidou deles até que morressem. Queria ter tido 5 filhos, mas emplacou apenas três. Nunca trabalhou para ninguém. Votava no Delfim, que segundo ele próprio, fora “o mais completo economista brasileiro, sem pares”. Assuava o nariz em um lenço Presidente. Dizia-me: “filho, só lhe peço que seja um homem, e que cuide da sua mãe e de suas irmãs”. “Estude!”. “Não namore antes dos 20”. “Fale como homem, sem resmungar!”. “Respeite sua mãe”.
.
Hoje tenho 39 anos, mais ou menos a idade do meu pai no início da década de 80. Hoje os homens andam em carros de plásticos, depilam-se, não fumam, sofrem de amor pela nova namorada de 22 anos, já se casaram duas vezes, mas nunca tiveram filhos. Frequentam psicólogos, médicos, esteticistas e especialistas em tarô na mesma frequência que um sujeito nos anos 80 pudesse visitar os bordéis entre a Rua Aurora e a Praça Júlio Mesquita. Usam Viagra para transar com mulheres de corpos perfeitos e jogam vídeo game. Se afligem com as aflições que talvez minha mãe tivesse à época do Massacre do Sarriá. Usam adoçante, cortam o cabelo no Shopping Iguatemi, passam hidratante e entendem de moda. Tem suas praias prediletas e curtem resorts na Bahia. Conseguem ficar 25 dias de férias, entre massagens e frozen margueritas. Não se importam com os negócios. São vítimas das ex-mulheres, e refere-se ao chefe como “meu diretor”. Fazem pilates e spinning, propelido por uma Gay Collection qualquer. Fazem duas graduações e uma especialização, mas não sabe escrever uma carta ou ler um contrato. Choram e riem. Dançam escandalosamente. Trocaram o Whisky pelo Rivotril. O Dodge pelo Fit. O ouro pela pulseirinha do Lance Armstrong. A trepada pela escalada nos muros artificiais das academias. Sonham em se aposentar. Votam na Marina Silva. Não se dão bem com a mãe. Disputam com as irmãs o uso nos finais de semana do apartamento que seus pais lhe deixaram na Riviera de São Lourenço. Tomam café da manhã aos domingos ao meio-dia, com amigos da balada. Usam havaianas para sair à noite, e ligam para o disque-denúncia se virem um porteiro fumando embaixo de um toldo, para se proteger da garoa. “Quero ser feliz!”, é o que dizem. “Qualidade de vida!”, é o que querem. Levam suas esposas aos swings. Não levam seus sobrinhos aos parques. Tampouco os visitam. Não têm tempo para ninguém que não sejam eles próprios.