Pra alegria de todos, dois textos que muitos aqui vão adorar detestar.
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Guia de boas maneiras na política. E no jornalismo
A obsessão da elite brasileira em tentar desqualificar Lula é quase patológica. E a compulsão por tentar aproveitar todos os momentos, inclusive dos mais dramáticos do ponto de vista pessoal, para fragilizá-lo, constrange quem tem um mínimo de bom senso.
Maria Inês Nassif
A cultura de tentar ganhar no grito tem prevalecido sobre a boa educação e o senso de humanidade na política brasileira. E o alvo preferencial do “vale-tudo” é, em disparada, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Por algo mais do que uma mera coincidência, nunca antes na história desse país um senador havia ameaçado bater no presidente da República, na tribuna do Legislativo. Nunca se tratou tão desrespeitosamente um chefe de governo. Nunca questionou-se tanto o merecimento de um presidente – e Lula, além de eleito duas vezes pelo voto direto e secreto, foi o único a terminar o mandato com popularidade maior do que quando o iniciou.
A obsessão da elite brasileira em tentar desqualificar Lula é quase patológica. E a compulsão por tentar aproveitar todos os momentos, inclusive dos mais dramáticos do ponto de vista pessoal, para fragilizá-lo, constrange quem tem um mínimo de bom senso. A campanha que se espalhou nas redes sociais pelos adversários políticos de Lula, para que ele se trate no Sistema Único de Saúde (SUS), é de um mau gosto atroz. A jornalista que o culpou, no ar, pelo câncer que o vitimou, atribuindo a doença a uma “vida desregrada”, perdeu uma grande chance de ficar calada.
Até na política as regras de boas maneiras devem prevalecer. Numa democracia, o opositor é chamado de adversário, não de inimigo (para quem não tem idade para se lembrar, na nossa ditadura militar os opositores eram “inimigos da pátria”). Essa forma de qualificar quem não pensa como você traz, implicitamente, a ideia de que a divergência e o embate político devem se limitar ao campo das ideias. Esta é a regra número um de etiqueta na política.
A segunda regra é o respeito. Uma autoridade, principalmente se se tornou autoridade pelo voto, não é simplesmente uma pessoa física. Ela é representante da maioria dos eleitores de um país, e se deve respeito à maioria. Simples assim. Lula, mesmo sem mandato, também o merece. Desrespeitar um líder tão popular é zombar do discernimento dos cidadãos que o apoiam e o seguem. Discordar pode, sempre.
A terceira regra de boas maneiras é tratar um homem público como homem público. Ele não é seu amigo nem o cara com quem se bate boca na mesa de um bar. Essa regra vale em dobro para os jornalistas: as fontes não são amigas, nem inimigas. São pessoas que estão cumprindo a sua parte num processo histórico e devem ser julgadas como tal. Não se pode fazer a cobertura política, ou uma análise política, como se fosse por uma questão pessoal. Jornalismo não deve ser uma questão pessoal. Jornalistas têm inclusive o compromisso com o relato da história para as gerações futuras. Quando se faz jornalismo com o fígado, o relato da história fica prejudicado.
A quarta regra é a civilidade. As pessoas educadas não costumam atacar sequer um inimigo numa situação tão delicada de saúde. Isso depõe contra quem ataca. E é uma péssima lição para a sociedade. Sentimentos de humanidade e solidariedade devem ser a argamassa da construção de uma sólida democracia. Os formadores de opinião tem a obrigação de disseminar esses valores.
A quinta regra é não se deixar contaminar por sentimentos menores que estão entranhados na sociedade, como o preconceito. O julgamento sobre Lula, tanto de seus opositores políticos como da imprensa tradicional, sempre foi eivado de preconceito. É inconcebível para esses setores que um operário, sem curso universitário e criado na miséria, tenha ascendido a uma posição até então apenas ocupada pelas elites. A reação de alguns jornalistas brasileiros que cobriram, no dia 27 de setembro, a solenidade em que Lula recebeu o título “honoris causa” pelo Instituto de Estudos Políticos de Paris, é uma prova tão evidente disso que se torna desnecessário outro exemplo.
No caso do jornalismo, existe uma sexta regra, que é a elegância. Faltou elegância para alguns dos meus colegas.
(*) Colunista política, editora da Carta Maior em São Paulo.
http://revistapittacos.org/2011/11/01/a-fala-de-lula/
A Fala de Lula
In Cultura, Politica on 01/11/2011 at 21:12
Sérgio Bruno Martins
A polêmica da vez, nas redes sociais, foi a piada, em forma de campanha, pedindo que Lula tratasse seu câncer através do Sistema Único de Saúde (SUS). Muitos rapidamente condenaram tais piadas, para serem acusados então de falta de senso de humor, de exagero ou de querer mitificar a figura do ex-presidente. De fato, em tempos de polarização entre politicamente corretos e incorretos, não é exatamente óbvio discernir a dinâmica por trás de polêmicas como essa. Mas o primeiro e essencial passo é remeter a discussão ao contexto certo. O problema maior dessa piada não é a falta de solidariedade ou amor ao próximo nela expressa, como alguns alegaram. Será sempre possível rebater esse argumento lembrando que Lula é uma figura pública, e que a piada dirige-se a esta figura, e não ao Lula de carne e osso. Enfim, que o alvo seja tão somente sua atuação como governante. Também não creio que se vá muito longe trazendo para a mesa a real situação do SUS. Uns vão acentuar suas mazelas, outros falarão de seus destaques (alguns já lembram, por exemplo, de que é possível realizar avançados tratamentos não-invasivos contra o câncer via SUS, ou de que este é o único sistema no mundo que distribui gratuitamente medicamentos contra certas doenças graves). Que essa seja em si uma questão importante, não se discute; mas não é nesse sentido, acredito, que este episódio coloca o SUS em cena.
Em que sentido, então? Façamos uma breve genealogia da piada, começando por outra piada correlata que emergiu mais ou menos ao mesmo tempo, mas que não ganhou a mesma projeção, até por ser mais obviamente ofensiva. Nesta última, a sugestão é de que o câncer teria sido causado não tanto pela bebida ou pelo cigarro, mas pelo abuso de ‘besteiras’ ditas por Lula em suas falas. Seria uma espécie de ironia ou retribuição do destino vê-lo acometido por uma doença que, potencialmente, põe em risco logo a sua oratória. Ora, o que motivou a piada do SUS não teriam sido justamente declarações de Lula sobre ‘querer ficar doente para se tratar no SUS’ ou ‘recomendar o SUS ao Obama’? A ideia não é que ele agora deve fazer jus à sua retórica? Basta sermos um pouco levistraussianos para daí percebermos que o que está em jogo na piada não é a realidade do SUS, o homem Lula ou mesmo o suposto desejo de santificá-lo, e sim a impropriedade da sua fala. Rir dessa piada é ver graça na volta, contra o próprio Lula, das ‘besteiras’ por ele proferidas.
Lula não é o primeiro e nem será o último político de expressão a cometer gafes. Mas é difícil pensar em algum outro político cujo discurso tenha sido tão policiado (a tal ponto que chegou a ser lançado um livro intitulado Dicionário Lula – um presidente exposto por suas próprias palavras). Tornou-se uma constante ver suas metáforas futebolísticas, quebras de protocolo e exageros retóricos entre aspas nas manchetes dos jornais, acompanhadas por vezes de colunas de opinião a lhe recriminar a língua solta. Em outras palavras, Lula foi sistematicamente construído na imprensa como um presidente que não sabe o que diz (e portanto, supõe-se, o que faz). Claro, outros políticos também foram marcados por suas gafes, como Paulo Maluf ou César Maia. Mas é interessante ver como o sentido atribuído à gafe varia conforme o personagem: César Maia foi amplamente retratado como um prefeito ligeiramente ‘maluco’, mas inteligente e administrativamente capaz (não seria sua maluquice até mesmo um sintoma de inteligência?). Já as gafes de Maluf podem até ter contribuído para a percepção negativa de seu caráter, mas não lhe custaram a imagem de político brilhante e até mesmo eficiente (é comum vê-lo como herdeiro do lema informalmente associado ao ex-governador paulista Ademar de Barros, ‘rouba, mas faz’). Com Lula, não: a gafe é diretamente relacionada ao despreparo ou à falta de compreensão da seriedade que o exercício da presidência exige. Seus deslizes só confirmariam o que as más-línguas já repetiam, que o presidente, ‘praticamente um analfabeto’, não estaria à altura de seu cargo.
Tocamos aqui no coração da ideologia senhorial brasileira e de sua reprodução: a educação vista não como instrumento de igualdade social, mas como marca de distinção. A lei, perante a qual todos são supostamente iguais, distingue entre a prisão comum (para a ralé) e a especial (para os que puderam adquirir um diploma universitário). Há também no mundo das gafes políticas o veredicto especial (maluquice, por exemplo) e o comum (burrice mesmo). Enfim, não é fato novo que o abismo educacional que separa pobres e ricos corre de encontro à mobilidade social, mas ao encontro da fixação e reprodução das relações sociais vigentes. Vale lembrar, porém, que é em relação a estas que o desqualificado e despreparado Lula aparece também como deslocado. E é nesse sentido, anterior a qualquer discussão sobre méritos e deméritos do seu governo, que reside o simbolismo de sua eleição. Mas assim funciona a ideologia: as revistas e jornais podem compartilhar superficialmente dessa constatação, do ‘milagre’ do operário que virou presidente, sem no entanto abrir mão de reproduzir valores arraigados. Para tanto, basta construir, na suposta objetividade das manchetes, a figura do presidente que não sabe o que diz. O operário virou presidente, certo, mas isso não significa que ele mudou de lugar, e sim que ele está fora do seu devido lugar. Seria inviável afirmar isso abertamente do próprio Lula, mas é plenamente possível construir essa convicção – ou melhor, deixá-la na boca do gol para que todo leitor ou telespectador possa construí-la ‘por contra própria’ – a partir da suposta impropriedade do seu discurso.
Há uma ironia, no entanto: as piadas em questão atestam a força daquilo que elas menosprezam. Se a fala de Lula é constante alvo de ridicularização, é porque ela, antes, causa apreensão. Desqualificá-la é um gesto defensivo, no sentido em que a oratória do ex-presidente é também percebida como sua maior arma política (como na imagem, obviamente equivocada, de Dilma Rousseff como um fantoche do ‘ventríloquo’ Lula). Num comentário particularmente revelador, pouco após a notícia do diagnóstico, a cientista política Lúcia Hippolito ressaltou ‘o abuso da fala’ de Lula, que ‘estava no palanque todo santo dia’ (como se isso não fosse algo comum na vida política e em diversas outras profissões que dependem primeiramente da fala). A mensagem – Lula fala demais – se repete: mesmo no comentário de Hippolito esse ‘falar demais’ é ambíguo, referindo-se primeiramente ao uso excessivo da voz, mas não deixando de conotar também um incômodo excesso de atividade política. Há uma espécie de antecipação (que para alguns certamente soa como comemoração) de um possível silêncio do ex-presidente, e de seus efeitos ‘bombásticos’ nas próximas eleições.
Seja em comentários como estes, seja na retórica mais desmesurada das redes sociais, toda essa expectativa ansiosa pelo silêncio de Lula é prova de que sua fala também está fora de seu devido lugar, e não apenas no sentido moralista que a deseja recolhida ao lugar afásico que se espera dos despossuídos. Não digo isso com intenção de endossar de antemão o conteúdo de tudo o que Lula diz. Há aspectos de seu governo ao meu ver admiráveis e outros extremamente criticáveis, mas não é isso o que importa aqui (em que pese que, sim, o desconforto com a ascensão social de um certo estrato da população certamente fomenta reações senhoriais). O ponto é vislumbrar, para além dos méritos e deméritos da pessoa Lula ou do governante Lula, mas a partir dessas impressionantes reações à fala de Lula, os alicerces ideológicos do debate político. Pois se há qualquer esperança de um debate mais politicamente são, esta depende de nos darmos conta que são esses alicerces que talvez estejam num lugar indesejável.