Já que o assunto sobre esse bandido chamado Naji Nahas voltou, vejam a matéria completa:
O mister Cambalacho
Revista Carta Capital - 13/02/2012
JUDICIÁRIO
As artimanhas de Naji Nahas para tornar-se credor de si mesmo na falência da Selecta, evitar o leilão judicial do Pinheirinho e burlar o pagamento de impostos
Por Rico Almeida e Rodrigo Martins
Quando a juíza Márcia Loureiro, da 63 Vara Cível de São José dos Campos (SP), expediu a ordem de reintegração de posse da área conhecida como Pinheirinho, fez mais do que determinar a saída de cerca de 1,5 mil famílias que ocupavam a área. A decisão, que respaldou u ma das ações mais desastrosas da Polícia Militar paulista, com flagrantes claros de desrespeito aos direitos humanos, tornou o caso emblemático sobre o ponto de vista do funcionamento da Justiça brasileira.
Em nome do "direito sagrado à propriedade privada" e contra "criminosos tirando vantagem da situação", como pregavam os mais exaltados, entre eles a ex vereadora Soninha Francine, a PM usou de truculência e intimidação. Mas uma análise da história do Pinheirinho e dos documentos que constam da longa disputa judicial pelo terreno não autoriza uma defesa tão entusiasmada da ação policial. Além das velhas suspeitas de grilagem, sobram provas de como o mega investidor, ou mega especulador, Naji Nahas agiu para burlar o pagamento de impostos e se valer do terreno para alavancar suas operações financeiras, digamos, nada ortodoxas.
o único uso que Nahas deu ao terreno, até ele ser ocupado pelas famílias sem-teto em 2004, foi o de garantia para dois empréstimos bancários. O primeiro ocorreu em 1982, quando o investidor tomou 1,1 bilhão de cruzeiros do Banco BCN, cerca de 20,2 milhões de reais em valores atuais, segundo a tabela de atualização do Tribunal de Justiça de São Paulo. Detalhe: o terreno ainda não pertencia oficialmente à Selecta, empresa de Nahas. Havia apenas um compromisso de compra e venda. A gleba só passaria para as mãos da companhia três anos mais tarde. O segundo empréstimo, em 1986, partiu de um banco francês. O imóvel foi hipotecado para garantir um empréstimo de 10,3 milhões de dólares com o BamefLanque de La Mediterranée.
Personagem conhecido das páginas policiais brasileiras, Nahas ganhou fama quando quebrou a extinta Bolsa de Valores do Rio de Janeiro. O especulador lançava mão de empréstimos bancários para comprar ações apostando na valorização constante do mercado. Usava contas correntes diferentes, de diversas empresas que controlava, para comprar grandes lotes de papéis e induzir outros investidores a fazer o mesmo, o que inflava artificialmente os preços. A Selecta seria uma das peças do esquema. Para isso, Nahas criou uma espécie de pirâmide financeira que ruiu ao se descobrir que ele não tinha como honrar os pagamentos. O caso rendeu a ele uma condenação de 24 anos de cadeia, revertida em instâncias superiores. Em 2008, ele voltou ao noticiário ao ser preso pela Polícia Federal na Operação Satiagraha. Agora Nahas é o principal protagonista de outra história controversa, repleta de artimanhas jurídicas, com um único propósito: livrar o Pinheirinho, um terreno de 1,3 milhão de metros quadrados, de um leilão judicial. As desconfianças em relação à origem do terreno remontam a 1969. Tornou-se famosa entre os moradores mais antigos de São José dos Campos a história da chacina dos Kubitzky, uma família de imigrantes alemães. Eles seriam donos do terreno onde hoje está localizado o bairro Campo dos Alemães, que inclui o Pinheirinho. A família foi barbaramente assassinada sem deixar herdeiros. O terreno, portanto, deveria ter ido para as mãos do Estado, mas não existe nenhum registro nesse sentido. Os advogados do Movimento Sem Teto sustentam que a morte dos alemães deixou a área livre para uma prática recorrente no Brasil: a grilagem. "Bairros inteiros surgiram de terrenos grilados, posses irregulares de terras públicas ou privadas que depois eram "legalizadas" com registros fraudulentos em cartório. Trata-se de um crime muito difícil de ser comprovado, pois os registros foram adulterados há muitos anos", comenta Antonio Donizete Ferreira, o Toninho, presidente do PSTU de São José e advogado dos sem-teto.
Na matrícula do Pinheirinho, registrada no Cartório de Imóveis de São José dos Campos, os nomes dos Kubitzky não aparecem. Nahas adquiriu o terreno de Benedito Bento Filho. O compromisso de compra e venda é de 1981, mas o negócio só foi concluído em 1985. Figura conhecida na cidade, o empresário, chamado de Comendador Bentinho por ter sido agraciado com o titulo da Ordem de Cristo, foi responsável por criar bairros inteiros em São José dos Campos. A influência é tão grande que diversas ruas da cidade foram batizadas com o nome de familiares do comendador. Ao jornal Folha de S. Paulo, ele negou qualquer possibilidade de a área do Pinheirinho ter sido alvo de grilagem: "É mentira. Os Kubitzky nem eram daqui. Eu é que comprei essa área, em 1978, da família Lahud, e a vendi ao Nahas. Tudo escriturado. Antes de ser invadido pelos sem-teto, aquilo era lindo, um verdadeiro jardim". Bentinho também é dono de um terreno vizinho ao Pinheirinho que deve sofrer valorização considerável agora que o local não é mais habitado por famílias pobres.
A hipótese de grilagem não é, porém, descartada por quem estudou a história do local: "Embora seja quase impossível de ser comprovada, é sabido que toda região sul de São José dos Campos sofreu grilagens na década de 80, quando moradores de fa-. velas da região central da cidade foram levados para a periferia, elevando o preço dos terrenos nesses locais", explica Luiz Gustavo Furlin, autor do estudo sobre a região publicado na revista Geosul, da Universidade Federal de Santa Catarina. O governo federal prometeu investigar se os Kubitzky eram ou não os verdadeiros donos da área.
Mas a fragilidade jurídica do terreno do Pinheirinho vai além das desconfianças quanto à sua propriedade. O processo de falência da Selecta Comércio e Indústria S.A., empresa de Naji Nahas que oficialmente é a dona do Pinheirinho, esconde uma série de procedimentos jurídicos que, na prática, acabam por reduzir drasticamente os débitos da empresa.
A falência da Selecta coincide com a época em que Nahas provocou a quebra da Bolsa do Rio, em 1989. No processo que tramita há 23 anos na 18" Vara CÍvel de São Paulo, o terreno do Pinheirinho é listado entre os ativos da empresa. Ele dá garantia de que as dividas serão quitadas. Caso os ativos não fossem capazes de pagá-las, o terreno iria a leilão. É assim em todo o processo de falência. Ocorre que os advogados de Nahas, para se livrarem da venda pública, lançaram mão de um procedimento que reduz o valor da dívida ao tornar o megaespeculador credor de si próprio.
A mágica é possível graças a uma regra que permite a negociação da dívida da empresa falida com terceiros. Em 1990, logo após a decretação da falência pelo Tribunal de Justiça, em uma decisão de segunda instância, Nahas passou a negociar créditos da dívida com as empresas credoras. Oferecia o pagamento imediato do valor, contanto que houvesse um deságio, um desconto do valor do débito. Em uma lista datada de 2001, dos 23 credores da Selecta 17 fecharam esse tipo de acordo. Entre aqueles com créditos a receber aparece o próprio Nahas, com direito a 15.088,61 reais, ou 30,7 mil reais em valores atualizados.
A manobra jurídica garante à Selecta o cumprimento de suas obrigações com os credores. Um documento de 2001, assinado pelo advogado de Nahas, Waldir Relu, informa o Tribunal que todos os débitos foram quitados, com exceção da empresa Câmbio Viagem e Turismo, que possui um crédito de 209.749,43 reais. No mesmo documento, o advogado diz que o dinheiro já está disponível para depósito. O processo de falência poderia ter se encerrado aí, mas segue em tramitação até hoje nos tribunais.
Os créditos foram comprados por duas empresas. Uma delas tem nome semelhante à empresa falida: Selecta Construções Imobiliárias. A outra é a RS Administração e Construção Ltda. A RS figura na Junta Comercial de São Paulo como de propriedade da Sociedad Immobiliária de Investimentos S.A., empresa com sede no Panamá, um dos famosos paraísos fiscais da América Central. No Brasil, a Sociedade é sócia de Teófilo Guiral Rocha, advogado de Nahas. Do total do capital de 4,2 milhões de reais, Guiral detém menos de 0,01%. Curiosamente o procurador da empresa panamenha no Brasil é ele mesmo.
O interesse de uma firma panamenha em uma empresa falida no Brasil é tão esdrúxulo quanto seria o de uma empresa de areia em conquistar clientes na praia. Ocorre que Guiral é um velho amigo de ahas. Figura, por exemplo, como testemunha da compra do terreno do Pinheirinho, na escritura do imóvel. E chegou a ser investigado pela Polícia Federal em 2008 ao lado de Nahas, Daniel Dantas e outros 22 acusados por uma série de crimes financeiros. Segundo o deputado federal Protógenes Queiroz (PCdoB), delegado responsável pela Satiagraha à época, Guiral é uma-espécie de "testa de ferro" de Nahas. Sua função seria "legalizar" os negócios do investidor. "Ele cria empresas de fachada e participa da engenharia financeira das operações de Nahas, de forma a dar uma aparência de legalidade a todos os negócios", comenta. "Ao usar essas empresas para comprar os créditos de credores, Nahas certamente condicionou o pagamento antecipado dos débitos a um desconto da dívida. Então surge o Teófilo e essa firma misteriosa, sediada num paraíso fiscal. É evidente que Nahas está por trás dela, a usou para tornar-se credor de si mesmo e dispor dos bens da massa falida mais livremente."
A atuação da RS é importante na história do Pinheirinho porque representa o elo entre o processo de falência da empresa e a dívida que ahas tem com a prefeitura de São José dos Campos. Segundo o próprio município, o valor gira em torno de 13 milhões de reais em atrasos de IPTD. Para cobrar essa dívida, a prefeitura entrou na Justiça com uma ação de execução fiscal. Graças a ela o terreno foi penhorado em 2005, um ano após a ocupação.
Ao todo, a RS comprou 48 milhões de reais em crédito de três empresas credoras: a Cógito Construtora e Planejamento, a Distribank S.A. Distribuidora de Valores e a Bancap Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários. Parte desse dinheiro, 1.597.492,64 reais, foi usada para quitar o débito de IPTU do Pinheirinho do exercício de 1997. Para tanto, a RS entrou com um processo de negociação na prefeitura e sentou à mesa com os procuradores do município. A estratégia foi justificada nos autos pelos advogados de Nahas como "intenção de preservar o patrimônio da falida (110 caso, a Selectci), evitando o pracéamento O leilão) que é objeto da execução fiscal".
Mas o acordo foi cumprido apenas parcialmente, já que os débitos anteriores à negociação (o IPTU de 1991 a 1996) não haviam sido quitados. A RS pagou apenas os honorários dos advogados da prefeitura, que somam 89.759,04 reais. E quem assina o acordo? Guiral, o amigo de Nahas. O curioso é que a RS pede que a massa falida da Selecta devolva o dinheiro a ela, por ter negociado a dívida em nome da empresa.
Em vez de pagar o que devia até então, a Selecta tentou mais uma manobra jurídica para se livrar da dívida do IPTU. Em 2006, entrou com um processo na Justiça no qual questiona o pagamento dos impostos. Alegou que não deve arcar com as despesas, sobretudo, após o terreno ter sido ocupado pelos sem-teto.
o assessor de comunicação da prefeitura, Felício Ramuth, afirma que, apesar das idas e vindas jurídicas, todos os débitos da Selecta com o município até 2004, quando o Pinheirinho foi ocupado pelos sem-teto, foram renegociados, parcelados e quitados. "O que falta pagar é de 2004 em diante. A massa falida da Selecta questionou a alíquota usada pela prefeitura no cálculo da dívida, mas esse valor de 13 milhões de reais é consensual. Enquanto a Justiça não define qual é a alíquota correta, podemos cobrar esse valor", afirma. "Se antes disso houve uma disputa judicial por anulação de débitos, a situação já foi resolvida. A informação que tenho é que tudo foi pago até o momento da invasão do terreno."
Mesmo que a prefeitura conseguisse acessar os bens da massa fal ida, os ativos da Selecta poderiam não ser suficientes para saldar os débitos de IPTU. Isso porque o terreno foi avaliado por um perito judicial em 2006 em 8,2 milhões de reais. Atualizados pela tabela de correção monetária utilizada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, alcança cerca de 10,5 milhões. Ou seja, abaixo dos 13 milhões de reais em dívidas de IPTU. É verdade que a tabela da Corte não capta a expressiva valorização imobiliária registr~da no Brasil nos últimos anos. Mas parece haver certo excesso nos preços ventilados pelos advogados de Nahas: algo entre 60 milhões e 200 milhões de reais.
De qualquer forma, parece muito vantajoso para Nahas saldar as dívidas do que permitir o leilão. "Pelas indicações do processo de falência, existe dinheiro suficiente para o pagamento dessa dívida, sem a necessidade do leilão judicial do terreno. O montante só o banco sabe e o acesso a essa informação se dá apenas por ordem do juiz", diz Denis Ometto, advogado do Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos, que ofereceu apoio jurídico aos sem-teto.
Um dos indícios de que a massa falida já não deve mais nada a ninguém é um documento de outubro de 2007, anexado aos autos do processo. Nele, Relu argumenta que não é necessário leiloar bens da Selecta porque todos os créditos haviam sido quitados, "restando apenas o da credora Titular S.A., cujo valor está depositado em Juízo". Além disso, ele ressalta, "existe saldo depositado no Banco Nossa Caixa, em nome da falida, acima de R$ 3.000.000,00 (três milhões de reais) para atender eventuais credores". Tanto Guiral quanto Helu não responderam aos pedidos de entrevista de Carta Capital.
"O que precisa ficar claro é se, de fato, a massa falida da Selecta ainda deve algum encargo trabalhista e quem são seus atuais credores. Porque tanto esses ex funcionários quanto os supostos credores foram usados como desculpa para o despejo de milhares de pessoas e, ao que tudo indica, o único beneficiário será o próprio Nahas. Não havia a necessidade de vender o terreno para pagar ninguém. Muito menos essa urgência para desocupar a área, antes mesmo de garantir moradias aos desalojados", afirma Ometto.
Depois que as máquinas da Selecta passaram por cima das construções das casas dos moradores do Pinheirinho, o que sobrou do terreno é um amontoado de entulho misturado a restos de móveis dos moradores que não puderam retirar seus pertences. Catadores de rua garimpam algum material que possa ter valor no mercado de reciclagem. Grupos de dependentes em crack se aproveitam do terreno vazio para çonsumir a droga. E os antigos moradores continuam a ser tratados como bandidos. Na quinta-feira 9, quem estava abrigado na escola Caic Dom Pedro acabou transferido para o ginásio Ubiratan ou o centro poliesportivo do Vale do Sol, na zona sul da cidade. Segundo a prefeitura, que busca uma forma de se livrar dos incômodos sem-teto, a medida foi necessária para organizar a escola para o retorno das aulas.